Começo por lhe ver a mão. Treme de frio enquanto segura a chávena quente com chá verde fumegante, e eu finjo que não reparo. Dou-lhe dois beijos curvando-me o mais possível para ela não ter que se levantar da frágil cadeira do café. Tenho dificuldade em reconhecer a menina a quem há vinte anos atrás eu convidava disfarçadamente para ir à última sessão comigo. Hoje está um filme muito bom no Oita, dizia eu. E ela perguntava o nome. E eu, que nunca sabia, contornava a mentira dizendo que um amigo me tinha dito que o argumento era bom. Ela acreditava sempre. Ou não.
Os seus olhos demonstram alguma dificuldade em sair das covas que o tempo lhe escavou nos ossos da face. Enfrento-os. Houve uma noite em que o filme era tão mau que eu não tive como me desculpar. Enfrentei-a e ela a mim. Sorrimos um para o outro como se o nosso silêncio se explicasse a si mesmo. E o nosso Amor, já agora. Aquele filme mau tinha demonstrado que eu inventava as idas ao cinema só para estar com ela. Foi a primeira vez que nos beijámos.
Os lábios dela parecem uma represa de palavras e de beijos. Estão pintados com a mesma cor de sempre, como se o tempo tivesse conservado o batom propositadamente para um dia qualquer. Este dia, em que a torno a ver quase como que por acaso, quase como dois planetas que se tornam a cruzar depois de uma longa volta à sua estrela. Vejo-a pelo meu lado que anoitece. Pergunto-lhe se quer ir à última sessão. Ela ri-se engolindo o som do riso. Pergunta-me qual é o filme. Que não sei, respondo. Ela sacode os ombros como se quisesse enxotar os anos que passaram.
Por falar em ombros, são tão pequenos e frágeis, os dela. Não percebo como é que eu pousava ali a minha cabeça enquanto ela me abraçava. Talvez nunca a tenha pousado literalmente e ficasse sempre em esforço para não a magoar. Era mesmo isso, já me lembro. Foi dali, do ombro esquerdo dela, que os meus olhos lhe contemplaram pela primeira vez os seios, margens dum decote que corria como um rio em maré alta. Foi dali que mergulhei e me afoguei tantas vezes quantas pude, até ela me socorrer e salvar a vida numa lenta respiração boca a boca.
Não me mentiste, disse ela. O quê? E ela diz que eu não fingi que sabia que filme queria ir ver, nem fingi que um amigo me dissera que o argumento é bom. Não fingi porque já não a Amo, diz ela. Nem ela a mim, sublinho. É a nossa última sessão, este chá quente que nos provoca calafrios. É, não é? É. Sorri engolindo de novo o som do riso.
bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»
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