Quando conheci a Sónia não consegui estabelecer contacto com ela a não ser através do olhar. Ela nasceu assim, sem ouvir e sem poder aprender a falar. Observei-a discretamente durante o resto da noite, a cortar o seu próprio e imenso silêncio com gestos mais ou menos bruscos, como se tivesse uma faca nas mãos e tentasse abrir caminho numa selva densa. Comunicava apenas com as poucas pessoas presentes que sabiam linguagem gestual, três ou quatro, e de vez em quando o irmão dela apresentava-a aos que iam chegando à festa da mesma forma que a tinha apresentado a mim. É surda e muda, dizia.
A festa devia-se, pelo menos pelo convite que me tinha sido feito, ao seu divórcio. O seu casamento tinha sido uma união violenta de quase quatro anos, e portanto o seu fim significava verdadeiramente um princípio. Era esse princípio que se festejava, embora ainda não se soubesse muito bem do quê. Talvez, pelo menos, duma vida melhor.
O irmão queria que esse princípio fosse rodeado por muitas e diversas pessoas, e por isso até a mim me pediu para participar. Eu, que era apenas um seu conhecido colega de trabalho com quem nunca trocara mais do que um "bom dia" ou "boa tarde". Às vezes podemos gostar muito de alguém com quem nunca falamos, disse ele justificando o convite inesperado.
E foi assim que me apaixonei por ela. Sem palavras e sem sons. Apenas um olhar tão profundo como um poço e um gesto tão universal como o de levar a minha mão ao peito dela. Corei. Toquei-lhe. Afastei-me e passei o resto da noite a segui-la disfarçadamente com os meus olhos nervosos.
Propositadamente fui ficando para o fim, e enquanto a porta daquele pequeno apartamento ia pingando para o exterior os convidados, eu ia ganhando espaço para o que o nosso olhar se pudesse tocar de novo, tal como a minha mão tocara no seu peito. Era o meu objectivo da noite, para depois poder adormecer aninhado nesse sentimento.
Há muitos anos que eu não dormia tão bem, que é como quem diz, tão perto dum Amor tão longínquo. No dia seguinte passei as horas do trabalho a pensar no que podia dizer ao irmão para me conseguir aproximar dela. À saída da fábrica cruzei-me calculadamente com ele e anunciei-lhe que, por coincidência, tinha começado a frequentar aulas de linguagem gestual. Era mentira, mas uma mentira inofensiva se eu começasse mesmo a fazê-lo num dos dias seguintes. Aliás, uma mentira que funcionou, porque ele convidou-me para ir lá a casa treinar com a irmã. Se eu quisesse, claro. Sorri-lhe.
Nessa mesma noite investiguei todas as possibilidades que havia na cidade para aprender a nova linguagem da minha vida. Fiz uma lista que percorri com o meu dedo indicador ao som do meu ritmo cardíaco, acabando por escolher um curso duma associação qualquer sem fins lucrativos. Inscrevi-me por email e compareci à primeira aula nessa mesma noite.
Primeiro bati à porta e ninguém abriu. Depois carreguei num interruptor e percebi, através dum vidro fosco, que uma luz vermelha se acendia lá dentro. Ouvi passos e senti a maçaneta rodar. Era ela, a Sónia, a professora. A mesma que me tinha ensinado que me podia apaixonar por gestos e na enormidade dum silêncio. Trocámos um olhar, ela pegou na minha mão e levou-a ao seu peito. Toquei-lhe, corei, entrei.
bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»
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