09 maio 2012

«coisas que fascinam (140)» - bagaço amarelo

bombardeamento

Aquela mulher é bonita. Tão bonita que agora mesmo, quando peguei no meu copo de cerveja para dar um gole, reparei que estava morta. A cerveja, não a mulher. Morto estive eu, durante não sei quanto tempo a olhar para ela sem me aperceber que tinha uma garrafa de Sagres à minha frente. Aliás, sem me aperceber de mais nada. O tlintar inquieto das moedas na bandeja do frenético empregado do café, o vapor da máquina expresso a aquecer mais um galão, o arrastar das cadeiras dos clientes que vão entrando e saindo. Não ouvi nada.
Agora levanto-me, vou à mesa dela e peço licença para me sentar. Digo-lhe que ela é bonita e agradeço-lhe a existência. Peço outra cerveja e bebo-a enquanto discutimos uma trivialidade qualquer. Era, de facto, o que me apetecia fazer. Mas não o faço. Fico aqui a sofrer os horrores de quem, sem contar, foi bombardeado e agora é um mero despojo esquecido duma guerra de que nem se deu conta. É assim que me sinto. O coração apertado, o estômago duro como uma pedra, as pernas tão enfraquecidas que tenho medo de cair quando tentar levantar-me. Estou ferido, pronto.
As mulheres não sabem, ou fingem não sabê-lo, mas o Amor é sempre uma operação de socorro a um homem ferido. Uma questão de vida ou de morte. Uma urgência. Esta também não o sabe, certamente, que agora se levanta deixando o dinheiro contado em cima da mesa, num desenho de moedas que se assemelha a uma flor qualquer. Como ela é. Vai-se. Desaparece pela porta de saída sem escutar os meus intensos e silenciosos pedidos de ajuda.
O café volta a ser isso mesmo. Apenas um café. E eu torno a sentir a ponta dos dedos dos pés. Lentamente apercebo-me de que o sangue recomeça a circular nas minhas veias e artérias. Abraço, com a palma da mão, a garrafa. Ainda está fria, apesar de tudo. Procuro um relógio para saber que horas são e, se possível, também que dia é, e de que mês e ano. São duas da tarde de um dia de Março de 2012. Sobrevivi.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»