16 maio 2012

«piadas palermas» - bagaço amarelo

Estou com um problema. Conto piadas palermas a mim próprio e não me acho graça. Não tenho bem a certeza se a minha falta de humor nasce no momento de as contar ou no de as ouvir, mas ao fim e ao cabo dá-me igual. Sou sempre eu. Essa é a única certeza que tenho.
Houve uma altura em que eu ensaiava essas piadas para as contar depois, quando a Márcia estivesse perto de mim. Gostava de a ver sorrir com todas as patetices que eu dizia e de, nos momentos em que tinha mais sorte, sentir a mão dela a apertar a minha. Sempre para me conduzir a qualquer lado mais rapidamente, nunca por me pertencer de alguma maneira. Mas era suficiente, ou pelo menos parecia-me que sim, essa sensação de que um dia podíamos ir mais longe. Eu e ela. Sermos mais "eu e ela" e menos "nós e os outros", quero eu dizer. Era o que eu sentia quando ela me dava a mão e me puxava.
Hoje, uns vinte anos depois, todos ficámos desolados por ela não ter podido vir. A mão do Norberto, por exemplo, desmaiou na minha enquanto me cumprimentava, quando eu lhe disse que era uma pena a ausência dela. Perdeu a força.

- A Márcia não vem? - e prendeu, com o dele, o meu olhar.
- Não. Telefonou-me há bocado a dizer que não podia.

A Márcia era a única mulher do grupo. De uma forma ou de outra, uns mais outros menos, todos tinham um carinho especial por ela. Quando ela estava presente, sorríamos; quando ela não estava presente, as conversas tornavam-se mais sérias e tristes. Sentíamos todos a falta dela, há vinte anos, tal como hoje, neste jantar que, ao fim e ao cabo organizei principalmente para poder estar com ela.
Lembro-me dela como se fosse limonada fresca num dia de Verão. Sempre. Uma vez, por exemplo, perguntou-me se eu queria ir ver o Romeu e a Julieta ao cinema. Eu respondi-lhe que só queria ir ver a Julieta. Uma patetice. Mais uma, aliás. E ela riu-se e escondeu a cara no meu peito, abraçando-me como se só eu a pudesse esconder do mundo nesse momento. Nunca mais esqueci esse momento. Nem eu, nem o meu peito.
É desse momento que o Norberto fala agora com os outros, enquanto eu me sirvo do primeiro copo de vinho tinto, maduro, da Bairrada. Diz que teve ciúmes e que me chamou palerma em silêncio. E eu, que me junto ao grupo enquanto dou o primeiro gole naquele vinho restringente, regresso vinte anos atrás na minha vida. Lembro-me da cara dele a mandar-nos que nos deixássemos disso e que o seguíssemos. E eu segui, puxado pela mão dela mais uma vez. Até ao café. O resto da tarde foi de um silêncio gritante entre nós os dois.
Hoje estou casado, o Norberto também, a Márcia também. Os outros também. Ninguém com ninguém. Juntamo-nos de novo e vamos mentindo uns aos outros sobre o nosso corpo. Que ainda estamos iguais, que ainda estamos novos, que ainda isto e ainda aquilo. Já percebi que só vamos dizer verdades sobre quem não está, e quem não está é a Márcia. De como todos gostávamos dela e como ela marcou a nossa adolescência. Mesmo não estando, é como se estivesse. Tem sido assim todos os dias da minha vida, a ensaiar piadas palermas para o dia em que consiga ver de novo.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»