22 agosto 2012

«locutora» - bagaço amarelo

Confunde-me esta coisa de me apaixonar pelo desconhecido, mais propriamente pelas desconhecidas. Uma vez, por exemplo, andei doente de Amor por uma locutora de rádio que nunca cheguei a ver. Para além da voz, nada mais. Creio que a culpa foi essencialmente do meu despertador, que me acordava sempre à mesma hora na mesma estação. Naquele período do dia em que ainda não estamos despertos, mas também já não estamos a dormir e em que, portanto, o sonho se dissolve facilmente na realidade, era a voz dela que me embalava.
É verdade que nunca a cheguei a ver, mas também é verdade que ela me fez perceber uma das muitas coisas que um homem procura numa paixão: um abrigo. Durmo sempre com a persiana corrida, deixado os seus buracos abertos. Desta forma, todas as manhãs a luz do Sol vai entrando devagar no quarto, como se tivesse que pedir licença para me vir despertar dum sono bom. Nesse momento não sei como está o mundo lá fora. Talvez haja uma revolução, talvez um acidente na rua tenha feito vítimas mortais, talvez dois homens se agridam um ao outro depois de um desentendimento no trânsito. Nunca me interessou. Dentro do meu quarto, por aqueles dias, a voz dela era o meu mundo e dizia-me que estava tudo bem. Ela também gostava dessa ténue luz que me espreitava, e depois punha uma música a condizer Só para mim.
Senti a falta dela quando, por causa do meu horário de trabalho, passei a acordar mais tarde. Durante alguns dias, por não a sentir perto de mim, levantava-me ainda ensonado e passava o resto dos dias a dormir em pé. Alguma coisa estava mal comigo, e demorei tanto a curar a falta dela como se fosse um outro Amor qualquer. Mas, claro, como se fosse outro Amor qualquer, lá acabei por passar a ressaca.
Hoje acordei mais cedo do que o costume e foi dela a primeira voz que ouvi. "Se ainda está no vale dos lençóis, fique a saber que tem mais sorte do que eu, e aproveite para ouvir esta música ainda de olhos fechados", disse. Eu fechei os olhos e ouvi-a.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»