O Amor não chega, disse ela. E eu, que tinha acabado de sair do banho para lhe abrir a porta, pedi-lhe que entrasse, fosse ao frigorífico buscar duas cervejas e um frasco de pickles, e esperasse um pouco por mim enquanto eu me vestia. Algumas gotas de água escorriam-me pelas pernas formando pequenas poças no chão da entrada. A minha mão esquerda segurava a toalha de banho à cintura, a direita encaminhava-a para a sala de estar.
Vesti as calças do dia anterior e uma das t-shirts que estavam por cima na gaveta da roupa, atrapalhado e confuso por aquela frase que mais parecia uma pedrada: o Amor não chega. Quando entrei na sala, ela estava silenciosamente sentada numa cadeira, mesmo ao lado da mesa onde tinha posto duas cervejas, já abertas, e dois pequenos garfos apoiados num prato cheio de pickles.
- O Amor não chega para quê?
- Não chega, é só isso! - disse ela pegando numa das cervejas.
Conheço a Joana e o Carlos há mais de vinte anos. Acompanharam, como um casal amigo, todo o meu primeiro casamento. Depois do meu divórcio continuámos próximos e a ter encontros mais ou menos regulares. Sempre achei que tinham uma relação perfeita, forte. Nunca discutiam, nunca davam sinais de fragilidade. Agora estão a separar-se porque, segundo a Joana, o Amor não chega.
Durante as férias recentes que realizaram, disse-me ela, foi ele a escolher todos os restaurantes onde comeram, as praias onde foram, os museus que visitaram e até os filmes que viram. Durante esses anos todos que passaram, ela deixou-se anular lentamente por ele, e agora já não existia a não ser para o seguir para todo o lado e contemplar as suas opções do dia-a-dia.
Nem ele nem ela fizeram de propósito. Talvez tenha sido um processo natural em que nenhum dos dois se apercebeu de quão incompatíveis podiam ser com o seu próprio Amor. O que ela sabe é que percebeu durante as férias que não é feliz com ele. Ponto.
As férias são isso mesmo, uma espécie de saída precária da prisão. Saímos de trás das grades que encerram a nossa normalidade de horários impostos por quem nos paga um salário de sobrevivência, de quatro paredes brancas e inócuas dum escritório sem sentido. Experimentamos, por alguns dias, uma nova relação com o mundo e ficamos surpreendidos por percebermos que não somos apenas máquinas de transformar oxigénio em dióxido de carbono. Afinal, estamos vivos e devemos tentar ser felizes.
Foi mais ou menos isto que eu lhe disse. Depois bebi a minha cerveja, tentando aproveitar ao máximo esse prazer corpóreo que é comer pickles ao mesmo tempo. Ela riu-se. Já não é mau, ou melhor, é óptimo.
bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»