15 novembro 2012

Maria de Magdala




(…) Com tantos movimentos e observações, acabou Maria de Magdala de fazer o penso ao dorido pé de Jesus, rematando-o com uma sólida e pertinente atadura, Aí tens, disse ela, Como te devo agradecer, perguntou Jesus, e pela primeira vez os seus olhos tocaram os olhos dela, negros, brilhantes como carvões de pedra, mas onde perpassava, como uma água que sobre água corresse, uma espécie de voluptuosa velatura que atingiu em cheio o corpo secreto de Jesus. A mulher não respondeu logo, olhava-o, por sua vez, como se o avaliasse, a pessoa que era, que de dinheiros bem se via que não estava provido o pobre moço, e por fim disse, Guarda-me na tua lembrança, nada mais, e Jesus, Não esquecerei a tua bondade, e depois, enchendo-se de ânimo, Nem te esquecerei a ti, Porquê, sorriu a mulher, Porque és bela, Não me conheceste no tempo da minha beleza, Conheço-te na beleza desta hora. O sorriso dela esmoreceu, extinguiu-se, Sabes quem sou, o que faço, de que vivo, Sei, Não tiveste mais que olhar para mim e ficaste a saber tudo, Não sei nada, Que sou prostituta, Isso sei, Que me deito com homens por dinheiro, Sim, Então é o que eu digo, sabes tudo de mim, Sei só isso. A mulher sentou-se junto dele, passou-lhe suavemente a mão pela cabeça, tocou-lhe na boca com a ponta dos dedos, Se queres agradecer-me, fica este dia comigo, Não posso, Porquê, Não tenho com que pagar-te, Grande novidade, Não te rias de mim, Talvez não creias, mas olha que mais facilmente me riria de um homem com a bolsa cheia, Não é só a questão do dinheiro, Que é, então. Jesus calou-se e voltou a cara para o lado. Ela não o ajudou, podia ter-lhe perguntado, És virgem, mas deixou-se ficar calada, à espera. Fez-se silêncio, tão denso e profundo que parecia que apenas os dois corações soavam, mais forte e rápido o dele, o dela inquieto com a sua própria agitação. Jesus disse, Os teus cabelos são como um rebanho de cabras descendo das vertentes pelas montanhas de Galaad. A mulher sorriu e ficou calada. Depois Jesus disse, Os teus olhos são como as fontes de Hesebon, junto à porta de Bat-Rabim. A mulher sorriu de novo, mas não falou. Então Jesus voltou lentamente o rosto para ela e disse, Não conheço mulher. Maria segurou-lhe as mãos, Assim temos de começar todos, homens que não conheciam mulher, mulheres que não conheciam homem, um dia o que sabia ensinou, o que não sabia aprendeu, Queres tu ensinar-me, Para que tenhas de agradecer-me outra vez, Dessa maneira, nunca acabarei de agradecer-te, E eu nunca acabarei de ensinar-te. Maria levantou-se, foi trancar a porta do pátio, mas primeiro dependurou qualquer coisa do lado de fora, sinal que seria de entendimento, para os clientes que viessem por ela, de que se havia cerrado a sua fresta porque chegara a hora de cantar, Levanta-te, vento do norte, vem tu, vento do meio-dia, sopra no meu jardim para que se espalhem os seus aromas, entre o meu amado no seu jardim e coma dos seus deliciosos frutos. Depois, juntos, Jesus amparado, como fizera antes, ao ombro de Maria, esta prostituta de Magdala que o curou e o vai receber na sua cama, entraram em casa, na penumbra propícia de um quarto fresco e limpo. A cama não é aquela rústica esteira estendida no chão, com um lençol pardo lançado por cima, que Jesus viu sempre em casa dos pais enquanto lá viveu, esta é um verdadeiro leito como o outro de que alguém disse, Adornei a minha cama com cobertas, com colchas bordadas de linho do Egipto, perfumei o meu leito com mirra, aloés e cinamomo. Maria de Magdala conduziu Jesus até junto do forno, onde o chão era de ladrilhos de tijolo, e ali, recusando o auxílio dele, por suas mãos o despiu e lavou, às vezes tocando-lhe o corpo, aqui e aqui, e aqui, com as pontas dos dedos, beijando-o de leve no peito e nas ancas, de um lado e do outro. Estes roces delicados faziam estremecer Jesus, as unhas da mulher arrepiavam-no quando lhe percorriam a pele, Não tenhas medo, disse Maria de Magdala. Enxugou-o e levou-o pela mão até à cama, Deita-te, eu volto já. Fez correr um pano numa corda, novos rumores de águas se ouviram, depois uma pausa, o ar de repente tornou-se perfumado e Maria de Magdala apareceu, nua. Nu estava também Jesus, como ela o deixara, o rapaz pensou que assim é que devia estar certo, tapar o corpo que ela descobrira teria sido como uma ofensa. Maria parou ao lado da cama, olhou-o com uma expressão que era, ao mesmo tempo, ardente e suave, e disse, És belo, mas para seres perfeito, tens de abrir os olhos. Hesitando, Jesus abriu-os, imediatamente os fechou, deslumbrado, tornou a abri-los e nesse instante soube o que em verdade queriam dizer aquelas palavras do rei Salomão, As curvas dos teus quadris são como jóias, o teu umbigo é uma taça arredondada, cheia de vinho perfumado, o teu ventre é um monte de trigo cercado de lírios, os teus dois seios são como dois filhinhos gémeos de uma gazela, mas soube-o ainda melhor, e definitivamente, quando Maria se deitou ao lado dele, e, tomando-lhe as mãos, puxando-as para si, as fez passar, lentamente, por todo o seu corpo, os cabelos e o rosto, o pescoço, os ombros, os seios, que docemente comprimiu, o ventre, o umbigo, o púbis, onde se demorou, a enredar e a desenredar os dedos, o redondo das coxas macias, e, enquanto isto fazia, ia dizendo em voz baixa, quase num sussurro, Aprende, aprende o meu corpo. Jesus olhava as suas próprias mãos, que Maria segurava, e desejava tê-las soltas para que pudessem ir buscar, livres, cada uma daquelas partes, mas ela continuava, uma vez mais, outra ainda, e dizia, Aprende o meu corpo, aprende o meu corpo.. Jesus respirava precipitadamente, mas houve um momento em que pareceu sufocar, e isso foi quando as mãos dela, a esquerda colocada sobre a testa, a direita sobre os tornozelos, principiaram uma lenta carícia, na direcção uma da outra, ambas atraídas ao mesmo ponto central, onde, quando chegadas, não se detiveram mais do que um instante, para regressarem com a mesma lentidão ao ponto de partida, donde recomeçaram o movimento. Não aprendeste nada, vai-te, dissera Pastor, e quiçá quisesse dizer que ele não aprendera a defender a vida. Agora Maria de Magdala ensinara-lhe, Aprende o meu corpo, e repetia, mas doutra maneira, mudando-lhe uma palavra, Aprende o teu corpo, e ele aí o tinha, o seu corpo, tenso, duro, erecto, e sobre ele estava, nua e magnífica, Maria de Magdala, que dizia, Calma, não te preocupes, não te movas, deixa que eu trate de ti, então sentiu que uma parte do seu corpo, essa, se sumira no corpo dela, que um anel de fogo o rodeava, indo e vindo, que um estremecimento o sacudia por dentro, como um peixe agitando-se, e que de súbito se escapava gritando, impossível, não pode ser, os peixes não gritam, ele, sim, era ele quem gritava, ao mesmo tempo que Maria, gemendo, deixava descair o seu corpo sobre o dele, indo beber-lhe da boca o grito, num sôfrego e ansioso beijo que desencadeou no corpo de Jesus um segundo e interminável frémito. Durante todo o dia, ninguém veio bater à porta de Maria de Magdala. Durante todo o dia, Maria de Magdala serviu e ensinou o rapaz de Nazaré que, não a conhecendo nem de bem nem de mal, lhe viera pedir que o aliviasse das dores e curasse das chagas que, mas isso não o sabia ela, tinham nascido doutro encontro, no deserto, com Deus. Deus dissera a Jesus, A partir de hoje pertences-me pelo sangue, o Demónio, se o era, desprezarão, Não aprendeste nada, vai-te, e Maria de Magdala, com os seios escorrendo suor, os cabelos soltos que parecem deitar fumo, a boca túmida, olhos como de água negra, Não te prenderás a mim pelo que te ensinei, mas fica comigo esta noite. E Jesus, sobre ela, respondeu, O que me ensinas, não é prisão, é liberdade. Dormiram juntos, mas não apenas nessa noite. (...)

O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago

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