15 março 2015

Cagunfa


Não tinha medo da morte que o futuro era apenas o minuto seguinte. Custava-lhe era carregar todos os dias aquela cara envelhecida que de manhã via no espelho e aquela farinheira pendente entre as pernas cada vez mais seca e menos dada à besuntice de um cozido à portuguesa.

Tivera cagunfa que as mulheres o achassem feio e na juventude compensara-o com milhentos modos delicados e mesuras que ainda lhe valeram uma meia dúzia de pinocadas antes do casamento tremelicando entre o álcool que o enfrascara de coragem e o medo de que os pais descobrissem tais falhas às regras da santa madre igreja em que o educaram. Descobrira durante a guerra colonial o medo da dor e do estropiamento e a alegria das mulheres ao serem abundantemente chupadas na maria dos prazeres que disciplinadamente ele incutira a si próprio como penitência antes de lá lhes espetar a coronha da sua melhor arma.

No regresso casara sem medo na igreja com o aplauso dos pais e com aquela que mais lhe lembrava a sua mãe e lhe fez o favor de o aceitar ordenando-lhe daí em diante os dias da sua vida nas regras da melhor convivência social e económica mesmo que em muitos deles fosse dada a achaques e a dores de cabeça que não era nada que um copo de uísque com duas pedras de gelo aconchegado às mãos e às partes não resolvesse. Às vezes o seu olhar desviava-se para umas pernas femininas mais bem torneadas ou para um rabiosque que saltava mesmo até ao rabo do olho mas contentava-se com essa salivação que era um homem de palavra e ainda tinha medo que os pais pulassem da tumba para o vir repreender.


[Foto © J.P. Sousa, 2008, Despair]