Agora que te vais
Que contas tu
Dos beijos que se deram
Na tua sombra
Que contas tu
Dos abraços que se deram
Para sentir a tua dimensão
Que nos relembras de outros tempos franciscanos
Que viste
Que sentiste
Do alto da tua copa
Mirando todo o povoado
Que nos contas tu
Sobre as casas e as ruas estreitas
E os socalcos cavados na montanha
Para desbravar o chão
E fazer crescer os pomares de macieiras
E os campos e os olhares
Que nos relembras das danças nas eiras
E dos cantares ecoados nos vales
Para alentar os almocreves vencendo
Os caminhos pedregosos
No transporte das madeiras
Da cortiça
E da aguardente de medronho
Conta-nos como os serranos
Se vestiam ao domingo
E ornamentavam as ruas com rosmaninho
Para passar a procissão
Conta-nos como se juntavam nas madrugadas
Apanhando a espiga de trigo
E o ramo da oliveira
Conta-nos como era grande a feira
E muito o gado
Quantos eram os saltimbancos
E os trovadores cantando as desgraças
Conta-nos se alguma vez
Os vendedores de banha da cobra fizeram um milagre
Ou se uma sina lida pelas ciganas bateu certo
Ou como eram boas as bolotas torradas e o torrão de alicante
E divertido entrar nas coloridas barracas
Dos espelhos curvos
Ou dos bonecos da cachamorrada
Conta-nos quantas joldras saíam a cantar
As janeiras e os reis
E quantas filhós e copos de medronho conviviam
Com o alforge na recolha dos molhes e farinheiras
E quantas eram as bebedeiras
Conta-nos também de outras bebedeiras
Que seguravam os pendões na procissão
Da quinta-feira nas endoenças
Relembra-nos os tempos
Em que as paredes eram pequenas
Mas as casas eram grandes na sua alma
E tu viste isso tudo
E agora que te vais
E levas muito deste povoado
Morre de pé
Que é como as árvores centenárias devem morrer
E deixa-nos a tua memória toda
(Poema retirado do livro “Nos socalcos da Serra”, de Fernando Reis Luís e com ilustrações de Leando Lamas Ermida. Ed. arandis)
Fernando Reis Luís
Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa