Duas meninas, filhas de pai gordo e mãe magra. À chatice de não terem nascido gémeas, juntara-se-lhes a dificuldade dos feitios, e para isso não houve anestesia ao crescerem. Uma fez-se moça depressa, e a outra ainda pior, já nascera mulher. Usavam vestidos iguais, azuis, com bolinhas encarnadas e sob as cabeças havia um soalho com tábuas soltas, que servia de esconderijo a sonhos infinitos.
São era a mais velha e só tinha espinhas a salpicarem-lhe o rosto. Três anos mais jovem, Clara era engraçada de se ver com demora, isto para quem gostasse de gordas bonitas. Os sujeitos vinham ao mel destes dois favos recheados. Rapazes famélicos, que iam vê-las atrás da serração, durante as manhãs dos Sábados de Julho, que amanheciam mornas e secas. O pai gordo era o dono, e pusera um regador ligado a uma mangueira ligada a um reservatório ligado a um gerador, e uma cortina de renda que rodeava dez passos em todo o redor, para que as filhas fizessem amor com a água, onde ele tinha os cães de guarda à disposição.
Surgiam completamente nuas por entre as confusas nebulosas do serrim, e havia um banco de três pernas junto à estrutura de rega que montara laboriosamente para que as filhas estivessem à vontade e não precisassem de sair detrás da cortina para descansarem os aromas mentolados que dali exalavam.
Um pai é que sabe, ou talvez se cansasse dos lamentos contínuos sobre a estreiteza das portas e a exiguidade da casa-de-banho da residência. As suas conversas predilectas eram sobre receitas de bolos e nos aniversários eram sempre as primeiras a sentarem-se à mesa ou, para lhes dar passagem, todos teriam de se levantar.
O primeiro namorado de São não a leva ao baile, e no cinema ela não cabia. A irmã, inquieta, vigia a todo o instante o desastre iminente.
- A Clara não é nada maldosa – desculpa a outra sem azedume. – Eu é que sou feia por ser mais velha.
O segundo namorado, apesar da oposição da irmã, instalou-se à porta de casa, mesmo que o pai gordo o impedisse de passar o portão do jardim. Seguia-lhe o volume pelas frinchas e pelas janelas, do lado de fora, e ia dando voltas à casa até cair zonzo. Tinha um pé inchado e faltavam-lhe dentes e São quase não dormia, preocupada com aquele vulto lá fora. O pai gordo trouxe um dos cães da serração e amarrou-o com uma longa corrente que esticava até ao cu do moço. O rapaz tropeçou no pé e, de esfregar uma coxa na outra a grande velocidade ficou com aquilo em carne viva.
Enquanto isto, Clara mantinha-se sentada no alpendre a tricotar cachecóis de lã que nunca terminava. Nem uma vez levantou os olhos, mesmo na altura do grande frenesim.
- Tu tens vergonha de mim? – Choraminga-lhe São. – Perdeste peso a tricotar e nota-se.
- Que tolice! – Afirmava a irmã. – Se perdi peso foi só a ver.
Agora era o pai gordo que quase não dormia. A mais velha estava a cair para o fim do prazo e continuava a transbordar um leito só. Embevecido, passava as noites a vê-la ressonar. Por sua insinuação todas as manhãs apareciam tinas de lama medicinal para ela aplicar no rosto.
- Já viu isto – exclama Clara para a mãe magra – que pouca vergonha!
Ardia um Sol de cobre e era Sábado. São foi ao baú buscar um conjunto lavado de roupa interior e Clara passou por ela sem a olhar, sentou-se na cama, do outro lado, e calçou umas alpargatas lilás. Não trazia roupa de baixo vestida. A irmã notou e ficou com a respiração muito alterada e a segunda soltou uma gargalhada cheia de boa saúde.
- Anda, molenga – disse-lhe – fazemos uma corrida até à serração?
Sob o travesseiro mil bombons e a manhã ainda mal nascera.
- Vais ficar à espera? – Pergunta-lhe São.
Com uma dor no coração Clara recusa-se a responder-lhe. Cada gaveta era um manancial de guloseimas e ainda por cima ao feitio de São dava-lhe para beber. Esta desconfia do riso nas suas costas e arrasta-se na longa caminhada até à serração. Lambia o suor copioso e recordava os sonhos. Atrás das orelhas havia um ligeiro cascão de lama ressequida. Clara já estava nua antes mesmo desta virar a esquina ao lado do barbeiro. Três sujeitos esfomeados compraram bilhetes para o espetáculo e arrumavam-se nos melhores lugares da lotação, atrás dos carvalhos centenários.
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Uma por dia tira a azia