- Ó Pereira, - sussurrou o Borrego, - tenho-o às manchas. Não sei o que é isto.
Fiquei calado a olhar para ele e ele, calado, ficou a olhar para mim.
Ele esperava uma resposta, eu esperava uma inspiração divina, uma revelação ou, pelo menos, uma intervenção alienígena consubstanciada na abdução imediata e definitiva do Borrego. Nada aconteceu.
- Tenho-o às manchas, Pereira - repetiu ele, dando uma segunda oportunidade ao Divino e aos que andam aí (diz-se). Infelizmente, nem um nem os outros a aproveitaram e ao meu reiterado silêncio contrapôs o Borrego com maus modos: - Tenho o caralho às manchas, caralho. Não estás a ouvir?!
Eu perdi a fé na intervenção de uma qualquer entidade de fora da Repartição e concentrei-me em chamar telepaticamente todos os colegas, o que também não resultou, provavelmente porque estava a pensar que esperava uma confidência do Borrego desde terça-feira mas que, ainda assim, não estava preparado para o que estava a ouvir.
Na verdade, na terça-feira não estranhei. Notei mas não estranhei. O Borrego estava estranho mas como sei que a mãe dele anda com uma medalha ao pescoço em que a face é o Prof. Dr. Oliveira e o reverso é o Prof. Dr. Caetano pensei que fosse da data, ainda que nunca lhe tenha conhecido simpatias públicas por aquelas figuras. Ontem, o homem continuava na mesma: murcho, preocupado e silencioso. Hoje não lhe liguei nenhuma. Mas o homem, notava-se, não conseguia continuar assim calado. Reparei que, da sua secretária o Borrego foi olhando para nós procurando escolher o confidente, o conselheiro ou, melhor, o vazadouro das suas angústias e aborrecimentos. Andei atarefado porque precisava, porque queria e porque, achei, era a melhor e mais diplomática forma de ser excluído da selecção criteriosa que o Borrego procurava fazer. Todavia não me safei. Fui o escolhido.
in Garfiar, só me apetece
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