08 outubro 2005

(128) - Walk Between Raindrops

Ela perguntou-me "És sempre assim?" e eu respondi "Quando a companhia é boa" e ela corou e disse "Obrigado, foste fenomenal." Eu esclareci que não tinha acabado a frase anterior e que queria dizer que "quando a companhia é boa sou melhor ainda" e disse-lhe. Ela afastou as pálpebras superiores da inferiores o mais que pôde e pôde muito, tanto que eu pensei que os olhos lhe pudessem cair – era o que acontecia se isto fosse um desenho animado – e depois semicerrou-as, deu um brilho perverso aos olhos e, num fio de voz, não sei se perguntou ou ameaçou "Estás a falar a sério?"
"Não acredito" disse ele. "Não disseste isso?" "Disse" respondi eu, galhofeiro. Ele espantou-se, porque acreditou em mim, e perguntou "E ela?" depois calou-se, estendeu a mão na minha direcção, mostrando-me a palma da sua mão direita, relativamente limpa segundo me pareceu, e voltou a falar "Ela não, tu. O que é que tu lhe respondeste?" "Tentei fazer o meu melhor sorriso trocista e pisquei o olho para o caso do sorriso trocista não ser bem compreendido."
"Mas a companhia não foi boa?" "A melhor" disse eu a pensar que era "a melhor que se pode arranjar." Ela sorriu, felizmente ainda não se lêem pensamentos. "És um brincalhão" anunciou ela, como se dissesse que tenho uma borbulha cheia de pus mal-cheiroso no meio da testa "mas a verdade é que foste óptimo." "Ainda bem que gostaste." Não gosto de tratar as pessoas por tu, mas ela tratou-me e eu achei melhor responder assim, senão lá vinha a conversa, "trata-me por tu" e eu respondia "está bem, vou tentar" e o "vou tentar" inquinava a conversa, provavelmente ela não saberia falar sem me tratar por tu e depois do meu sincero "vou tentar" passaria a verme como um empedernido e chato snob, ainda que das três palavras ela, possivelmente – e este possivelmente é muito importante pois evita um juízo definitivo acerca da pessoa em causa –, só conhecesse o chato, ainda que, possivelmente - e este é um favor que faço a mim próprio - não estivesse muito longe da verdade.
"E depois?" "Depois?" ele abanou a cabeça, sim, sim, depois, "Depois paguei e vim-me embora." "Pagaste?!" "Sim, que remédio." "Pagaste?" "Paguei" "Mas estás a falar de quê?" "E tu?" "Eu pensava que tinhas estado com a gaja." "Estado? Estado como?" "Que a tinhas comido", esclareceu ele. "Comido?" "Sim! Comido! Afinal foste fenomenal em quê?" "Ah! Pensavas que tinha havido um envolvimento amoroso entre nós" "Não" "Então?" "Pensei que tivesse havido um mero envolvimento físico de cariz sexual entre vocês."
"Declamas outro?" "Não, já comprei o livro, leio em casa." "Eu gostava que declamasses outro." Eu fiz o olhar de "O que é que eu ganho com isso?" mas ela ou não percebeu ou fez-se despercebida e eu não declamei.
"A menina desculpe tem o livro dos Fedorentos?" Interrompeu uma velha com mau hálito. "Do Gato Fedorento?" perguntou ela, com uma careta, o mau hálito da velha era poderoso. Eu aproveitei e passei-me, subrepticiamente. A velha disse que era para o neto.

in Garfiar, só me apetece

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