25 janeiro 2006

Cabidela

Não sei se já leste, Sãozinha, «O fim da aventura» do Graham Greene, um romance em tempo de guerra que me fez tomar consciência de que, ao contrário do meu tio-avô que foi gaseado na Primeira, do primo direito da minha mãe que ganhou uma prótese de perna em África, nunca eu senti o cheiro do sangue queimado e sempre vi os conflitos armados expostos com a arte da «Guernica» do Picasso ou do rosto ainda imberbe do José Rodrigues dos Santos a anunciar a Guerra do Golfo em ecrãs verdinhos como os dos primeiros computadores.

Bem sei, São, que vi alguns dos fogos deste verão, tal como nos anos anteriores, com as árvores a crepitar e as faúlhas a cairem dos céus como se fossem naturais como uma chuvada de granizo. Mas mais não posso que imaginar a barriga de alguém que tantas vezes percorri em beijos frementes e língua escorregadia a esvair-se em borbotos de sangue que me pintalgam a cara perante a minha impotência angustiada. Só posso visualizar as pernas pelas quais tantas vezes escorreguei, excitando-me com a fricção dos seus pêlos na minha púbis, agora estralhaçadas por uma qualquer mina perdida. Apenas concebo com a nitidez de um filme ver aquele homem esguio, sem uma gordurinha a mais, com os músculos das nádegas espetados, ainda mais magro, com as vértebras do tronco proeminentes e a já não bastar o meu corpo em alegres contorções para lhe saciar a fome.

Tu sabes, Sãozinha, que as matronas romanas se extasiavam com os corpos ensaguentados dos gladiadores e quiçá, conseguiam até orgasmos perante os pedaços de carne fresca pendentes da boca dos leões e contudo cada vez me convenço mais que nem uma autópsia de arroz de cabidela consigo deglutir.

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