24 janeiro 2015

«Psicanálise» - por Rui Felício


O consultório do Dr. Morais, psicanalista onde ela regularmente ia por causa dos problemas que a atormentavam desde a separação do marido, fica no 5º andar daquele edifício da Av. da República.
Ainda na rua, olhou o relógio e estugou o passo. Já estava atrasada uns cinco minutos.
No átrio do prédio, um letreiro espetado na porta avisava que o elevador estava temporariamente avariado.
Nervosa, abanando a cabeça, não teve outro remédio senão subir a pé as escadas dos cinco andares.
Em cada degrau, revoltada, proferia um palavrão diferente, à medida que ia subindo.
Ficou admirada. O seu reportório de obscenidades era muito mais vasto do que ela própria supunha.
Retiniu finalmente a campainha da porta do consultório, cumprimentou o Dr. Morais, entrou e atirou-se para o divã, ofegante.
Deitada de costas, durante uma hora foi falando do ex-marido. Contou o sonho que teve na noite anterior em que ele uma vez mais a traía com a sua melhor amiga.
Detestava chorar em frente a estranhos, mesmo sendo o seu médico psicanalista. Mas não conseguiu reter as lágrimas de revolta ao recordar o sonho, perante o imperturbável silêncio do Dr. Morais, sentado atrás do divã onde ela estava deitada.
Prosseguiu os seus relatos, sem uma única palavra do psicanalista que nada dizia, sem a interromper.
Ela apenas lhe ouvia o respirar compassado atrás dela.
Aquele silêncio ajudava-a mais do que mil palavras. Sentia-se mais descontraída, menos nervosa.

O Dr. Morais era na verdade um grande médico. Fazia-lhe tão bem...
Respirou fundo. Ao fim de uma hora calou-se finalmente, aliviada.
Soergueu-se do divã, ajeitou o vestido, levantou-se e olhou-o para lhe agradecer.

O conceituado psicanalista Dr. Morais, na penumbra do consultório, sentado na cadeira por trás do divã, de cabeça pendente e um ténue fio de saliva a escorrer-lhe pela comissura dos lábios, dormia profundamente...

Rui Felício
Blog Encontro de Gerações
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