15 outubro 2010

Um Interrogatório Informal

Vindo expressamente do Brasil para se encontrar e ouvir informalmente o ilustríssimo causídico português, que jurava a pés juntos querer colaborar incondicionalmente com a justiça brasileira mas não ter tempo para se deslocar ao Brasil, o rotundo Delegado Baleia mantinha ao fim de seis horas de conversa o mesmo ar descontraído, fresco mas repetitivo, insistente e tenaz com que a iniciara, apesar de se encontrar farto do seu melífluo, prolífico, escorregadio e inconsequente interlocutor – o Delegado coleccionava adjectivos que ia anotando em letra miúda nas margens das folhas do coçado caderno de argolas que o acompanhava e usava para tomar notas.
Sozinhos, o Delegado e o advogado, oficialmente não suspeito, esgrimiam e partilhavam de forma etérea, indefinida e aparentemente inconsequente argumentos, perguntas e respostas, dúvidas, conclusões e histórias relacionadas, nem sempre compreensivelmente, com as pessoas, as relações e os factos sob investigação.
A vasta experiência a interrogar toda a espécie de gente e a leitura compulsiva de policiais, haviam criado no mítico Delegado Baleia a capacidade de permanecer durante horas a fio com o mesmo ar e com o mesmo tom que adoptava no princípio dos interrogatórios e, em trinta anos de serviço, o Delegado só contava dois suspeitos que o tinham ultrapassado em paciência, frescura e talento para permanecer todo o interrogatório sem sinais de cansaço, desânimo ou desespero. O Delegado moía-os e cansava-os de uma maneira tal que, era certo, num dado momento os interrogados acabavam por quebrar – ainda que isso nem sempre fosse consequente para a investigação.
O Delegado recordou os dois interrogados que o haviam aguentado, ambos com mais cabelo que o homem que se sentava agora à sua frente, e, muito a custo, começava a convencer-se que teria de acrescentar um sujeito careca à reduzida galeria de interrogados inquebráveis.
Rodando a cadeira que viera com ele do Brasil, o Delegado ouvia com ar interessado o advogado relatando os fastidiosos e áridos pormenores de uma operação financeira e, ainda que a voz do interrogado lhe soasse um pouco fatigada, estava prestes a admitir a derrota e a dar por terminado o interrogatório na próxima hora, hora e meia: logo que recapitulassem a noite do crime pela vigésima vez. Foi o que fez logo que o causídico se calou.
Após longa e monótona recapitulação dos passos do interrogado no Brasil à data dos factos, o anafado Delegado declarou (levando o advogado ao desespero):
“Há coisas que eu ainda não percebi, doutor. Provavelmente, por incapacidade minha, admito, mas a verdade é que estamos aqui para nos esclarecermos ou, pelo menos, para eu me esclarecer.
Como já lhe disse e agora reafirmo, o Estado Brasileiro agradece encarecidamente a sua disponibilidade para se encontrar comigo. Da mesma forma que agradece ao Estado Português a disponibilização deste gabinete para o nosso encontro informal.” O Delegado olhou em volta. O ilustre causídico por mais que tentasse – e tentou muito – não conseguiu perceber se o interrogador estava a ser irónico, ainda que lhe parecesse que só podia dada a exiguidade e aspecto do gabinete.
O Delegado voltou a fixar-se no interlocutor e continuou:
“Longo e frutífero encontro em que, no entanto, eu me sinto defraudando todas as expectativas, até as suas, doutor. Ou principalmente as suas, doutor, que, com toda a certeza, esperava mais da pessoa que atravessando o Atlântico para consigo conversar e que o doutor certamente procurava iluminar…”
“Sabe, Delegado…” O advogado interrompeu a enviesada repetição do discurso inicial que o Delegado debitava mas calou-se. Olhou para os sapatos, passou as mãos pelo rosto e tornou a suspirar. Hesitava. Pousou o cotovelo esquerdo no braço do cadeirão onde estava sentado, apoiou o queixo no polegar da mão esquerda e tapou a boca com o indicador dobrado em forma de gancho. Olhou para o Delegado que se mantinha impávido à espera da continuação. O advogado cerrou os lábios, soltou o queixo, pousou o cotovelo direito no braço respectivo do cadeirão e juntou as mãos, entrelaçando e separando os dedos.
“A velha atacou-me”, desabafou com um profundo suspiro de cansaço o ilustríssimo causídico, causando o invisível pasmo do Delegado.
“Atacou-o, doutor?”, perguntou o Delegado, agitando-se ligeiramente na cadeira e mordendo ligeiramente o lábio inferior enquanto esperava pela resposta.
“Atacou-me”, confirmou sem mais detalhes o causídico, notando satisfeito a alteração, ainda que mínima, da expressão do Delegado.
“Atacou-o como?”, insistiu o Delegado.
“Atacou-me sexualmente”, completou o causídico, com uma careta como se a qualificação do ataque o incomodasse.
“Sexualmente?!”, soltou o Delegado, espantado. “A vítima atacou-o sexualmente?”
O causídico assentiu com a cabeça.
O Delegado procurou raciocinar mas não conseguiu e perguntou automaticamente como fazia nos casos de estupro: “A falecida molestou-o usando de violência, foi?”
O suspeito oficioso fixou o Delegado e corrigiu: “Antes de ser falecida.”
O Delegado abanou a cabeça: “Claro, antes de ser falecida. Mas molestou?”
“Não.”
O Delegado semicerrou as pálpebras fixando o suspeito, desviou o olhar para o tampo da secretária onde pousara as palmas das mãos abertas e, sem levantar os olhos, remoeu:
“A falecida quando ainda estava viva atacou-o sexualmente sem, todavia, o molestar, foi isso?”
“Foi.”
“E usou de violência?”
“Quem?”
O Delegado hesitou mas esclareceu: “Ela.”
“Não, foi apenas insistente. Demasiado insistente.”
“De tal forma que o Doutor considera que foi atacado.”
“Sim.”
O Delegado encaixou a resposta telegráfica sem disfarçar o enfado que lhe causavam as manhas do causídico que a todo o instante o tentava trapacear, expirou ruidosamente e contou os dedos espalmados em cima da secretária. Nove. Suspirou e, estudando o espaço que seria ocupado pelo mindinho esquerdo se o tivesse, decidiu saltar etapas.
Levantou as mãos da secretária, recostou-se na velha cadeira giratória de madeira que se ajustava ao seu volumoso corpo como um velho sobretudo, arrumou os braços sobre a barriga e perguntou docemente: “E o doutor, para se defender desse ataque inesperado e soes, matou-a?”
“Não.”
“Bem me parecia”, comentou o Delegado com ar subitamente divertido. “Mas ela concretizou o ataque?”
O causídico anuiu com a cabeça.
O Delegado Baleia continuou: “E o doutor consentiu ou foi forçado?”
“Consenti. Acabei por consentir.”
“E esse ataque teve lugar no dia do decesso?”
“Sim.”
“Na viatura?”
“Sim.”
“Em andamento?”
“Sim. A principio, sim.”
“O doutor imobilizou o veículo, foi?”
“Para nossa segurança.”
“A ela não lhe valeu de muito”, constatou o Delegado, com uma repentina gargalhada.
O ilustre causídico censurou-lhe o comentário e a gargalhada com um olhar mortífero mas não ripostou.
O Delegado parou de rir e perguntou: “E, afinal, em que é que se concretizou esse pretenso ataque?”
“A minha cliente disse-me, “Sabe, doutor”, e eu disse “Diga?” e ela virou-se para mim, pousando a sua mão esquerda na minha perna direita, afagou-a quase até à virilha e disse que gostava muito de mim, que sonhava comigo e que ansiava por me ter…”
“Assim de repente?”, interrompeu o Delegado, apertando o queixo entre o indicador e o polegar da mão direita.
“Sim, assim de repente.”
“Me desculpe. Me desculpe a interrupção. Continue… Ela ansiava por o ter?”
Os homens entreolharam-se em silêncio percebendo a duplicidade da pergunta. O Delegado ergueu contidamente as sobrancelhas mantendo a pergunta e o advogado respondeu:
“Foi o que ela disse. E depois continuou dizendo-me que, para além do patrão, nunca desejara um homem como me desejava a mim. E que tinha saudades minhas quando estávamos afastados. E nisto agarrou-me o meu órgão sexual e os meus testículos, de forma vibrante, apaixonada, quase desvairada.”
“E o doutor?”
“Eu fiquei surpreendido. Por uns momentos, nem tive reacção. Fui completamente apanhado de surpresa. Devo ter dito qualquer coisa mas só me lembro de sentir uma erecção e ficar envergonhado. Foi aí que decidi imobilizar o veículo. Ela já estava quase sobre mim, tentando abrir-me a braguilha e eu, ainda que não quisesse, estava a ter uma erecção.”
O Delegado ouvia com atenção, estudando com detalhe a fisionomia, os gestos e o tom do causídico. Este continuou:
“Assim, logo que pude, parei e tentei fazer parar a minha cliente.”
“Mas não conseguiu?”
“Pois não e a minha erecção excitava-a. Levava-a a crer que eu me estava apenas a fazer difícil. A tentar ser social e profissionalmente correcto mas que, no fundo, também a desejava.”
“Os advogados em Portugal não podem comer as clientes?” perguntou o Delegado de chofre, esquinando o sorriso.
“Claro que não”, empertigou-se o causídico.
“Nem praticar quota litis”, lançou o Delegado, mantendo o sorriso matreiro.
“O que tem isso a ver para o caso?”
“Nada”, reconheceu o Delegado. “Foi só uma outra coisa que eu me lembrei que os senhores advogados portugueses não podem fazer. Não é verdade que não podem estabelecer os honorários numa percentagem directa do ganho do cliente?”
O causídico cerrou os lábios e aceitou num murmúrio: “É.”
“E, no entanto, fazem-no.”
O advogado encolheu os ombros e coçou o pescoço com a unha do indicador direito, que acabou por enfiar no colarinho da camisa.
Os homens olharam para a ventoinha parada num canto do gabinete.
“Está quebrada, doutor”, explicou o Delegado, quando reparou no olhar do outro. “Estão esperando os aparelhos de ar condicionado e, enquanto isso, não há verba para consertar as ventoinhas que deixam de funcionar. Foi o que me disseram os colegas portugueses.”
“Pensava que era uma técnica”, disse o advogado.
“Uma técnica?”
“Uma técnica de interrogatório” explicou o advogado. “Pensei que pretendessem vencer-nos pelo calor.”
“Não. Parece que é falta de grana, mesmo.”
O causídico aproveitou a espécie de pausa surgida com a ventoinha e, disfarçadamente, viu as horas no seu relógio de pulso.
Atento, o Delegado deixou passar o gesto sub-reptício do interrogado como se não o tivesse visto e, voltando-se de novo para a ventoinha, disse:
“Mas não conseguiu…”
“O quê?”
“Pará-la”, explicitou o Delegado. “Apesar dos apelos da ética, não conseguiu parar ou demover a sua cliente.”
O advogado fixou o Delegado e manteve o olhar quando os olhos se cruzaram.
“Eu…”
“O doutor julga que eu acredito nessa patranha?”, interrompeu o Delegado, pousando os cotovelos na secretária.
As pálpebras do causídico afastaram-se, os lábios cerraram-se e os olhos chamejaram e acabaram por se fixar num ponto indefinido da camisa do inquiridor.
“Só não percebo” continuou o Delegado, pousando o queixo nos nós dos dedos da mão esquerda que envolvia a direita, “onde é que essa história nos levava ou como é que ela o ia beneficiar.”
Uma expressão de transtorno e aborrecimento perpassou momentaneamente na face do advogado, transformando-se depois numa expressão voluntária de dureza e melindre, que se verbalizou na declaração:
“O senhor acredita no que quiser.”
“O doutor quer-me fazer querer que a vitima estava apaixonada por si, que não se conteve e o atacou sexualmente de forma absolutamente juvenil?” contrapôs o Delegado.
“O senhor acredita no que quiser.”
“Isso é verdade mas o doutor quer ainda que eu creia que, não resistindo aos seus avanços, o doutor acabou por permitir que a vitima lhe fizesse sexo oral?”
“Eu não disse isso”, replicou o advogado.
“Ia dizer”, sentenciou o Delegado.
O advogado não desmentiu.
O Delegado continuou:
“E, por fim, o doutor quer que eu acredite que, depois desse fait-divers, a vitima limpou os cantos da boca ao lencinho de seda que trazia na mala, o doutor arrumou o seu bráulio, fechou a braguilha, ligou o automóvel e seguiram a viagem, que terminou exactamente como o doutor tem dito até aqui?... É isto?”
O causídico anuiu com a cabeça e completou:
“Basicamente, é. De forma ignóbil e rasteira, é. A…”
“Não é “a”, meu caro doutor”, interrompeu o Delegado. “É “e”. E então? E o que é que isso nos adianta? E o que é que isso altera?”
“Eu que eu quero dizer ao Delegado é que a minha posição tem sido sempre no sentido de resguardar a memória da minha constituinte. Que as eventuais falhas das minhas declarações resultam desta situação melindrosa e totalmente do foro privado que eu acabei de lhe descrever. E que, naturalmente, toda a minha conduta naquela noite, ou melhor, a partir dali, foi altamente condicionada por este episódio.”
“Ficou abalado.”
“Sim, claro. Claro que fiquei.”
“Estou a perceber.”
“Está a perceber o quê?” explodiu o advogado.
O Delegado Baleia riu-se para dentro, já não precisava de aditar o manhoso, untuoso e falacioso indivíduo que se mantinha à sua frente ao rol de interrogados supremos.
“E digo-lhe mais, doutor” adiantou o Delegado, pausadamente, ignorando a explosão do advogado. “Não só estou a perceber como já formei a minha opinião e já me julgo esclarecido, pelo que podemos dar por terminado este encontro informal pois…”
“Acabou?”, perguntou o causídico.
“Sim, acabou”, confirmou o Delegado.
“Eu vou fazer como foi acordado”, avisou o causídico, levantando-se. O Delegado fez uma careta de incompreensão. O causídico, em pé, explicou: “Vou tornar pública esta diligência.”
“Ah! Sim, naturalmente, as condições acordadas mantêm-se, senhor doutor. Se acha que isso o favorece.”
“E a policia brasileira confirma o encontro e a minha integral e incondicional disponibilidade mas não dá detalhes.”
“Foi o acordado.”
O causídico sorriu e estendeu a mão ao Delegado, que, sem se levantar, a apertou.
“Tive muito prazer, Delegado Baleia. E deixe-me que lhe diga que o que dizem de si é inteiramente verdade: o senhor é grande.”
“Obrigado.” O Delegado agradeceu como se tivesse sido elogiado, largou a mão do advogado, apontou de mão estendida para a porta e ordenou: “Faça-me o favor, doutor, pode sair. É que eu vou já iniciar os termos para a carta rogatória que vamos enviar para cá para o seu interrogatório formal. Passar bem. Ah... E o prazer foi todo seu, doutor. Todo.”

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