– Sabe o que é que ele me disse, doutor?
Acenei que não com a cabeça.
– Que era de ferro, doutor. – A mulher soltou um riso escarninho. – De ferro! – exclamou, fechando-se num carão de desgosto e ressentimento. – E, afinal, sabe o que ele era?
Repeti o aceno.
– Gelatina. – A mulher imitou o meu aceno de cabeça. – Ele era feito de gelatina, doutor. De gelatina.
– Quem o vê… – disse eu, lentamente à espera da interrupção.
– Sim, isso é verdade, doutor – avançou a mulher, tal como eu esperava. – Quem o vê com aqueles fatos e cara de mau e aquele ar másculo de quem leva tudo à frente…
– Sempre firme e hirto…
– Engana bem, engana – concluiu, fungando. – A mim enganou-me, doutor. A mim enganou-me bem!
Levantei-me e rodeei a secretária, agarrei uma caixa de lenços de papel que se encontrava sobre um móvel encostado à parede e estendi-a na sua direcção. Ela retirou três pedaços de papel e assoou-se ruidosamente. Admirei disfarçadamente os movimentos que se produziram dentro do apertado decote, que a mulher usava como um expositor, e, depois de devolver a caixa ao seu primitivo lugar, tornei a sentar-me.
– Esta altura é péssima para as alergias – justificou-se a mulher, com os papéis ranhosos na mão.
– É – concordei, segurando no cesto de papéis para ela depositar os lenços, o que fez.
– Homem de Ferro – disse ela, sarcástica. – Ainda gostava de saber como é que lhe chamam Homem de Ferro – continuou no mesmo tom. – De certeza que nunca gramaram com ele em cima, esparramado, a mexer-se em câmara lenta, para cima e para baixo, tão firme como uma gelatina, tão duro como um pudim… Homem de Ferro!... Bah!... – A mulher fez uma pausa para ganhar fôlego. – Mas a culpa é minha, doutor, só minha! Eu, eu mais do que ninguém, já devia estar à espera, não acha? Eu já devia ter aprendido! Quem é que me mandou a mim ser burra… Aaaaah… – parodiou tom e gestos de gratidão divina, erguendo os olhos para o tecto e levantando as mãos e agitando-as ligeiramente. – Aaaah! O homem é de ferro, é o Homem de Ferro!... Burra! Que burra, doutor!... Homem de Ferro, ah! Tretas!... Mas a culpa é minha…
– Sim… – admiti, brincando com a esferográfica para me distrair dos movimentos ondulantes das comprimidas mamas que pareciam querer saltar na minha direcção. – É verdade que a sua anterior experiência lhe podia ter servido de aviso mas… mas… – Interrompi-me, distraído pelas consequências estéticas da inspiração profunda que se seguiu ao fim do encenado agradecimento sacro.
– Mas? – perguntou a mulher, expectante da minha conclusão.
– Ahn?
– A minha anterior experiência podia ter-me servido de aviso mas? – repetiu, vendo o meu mudo atabalhoamento.
– Ah! – Recuperei as minhas faculdades e voltei à esferográfica. – Quero dizer: podemos aprender com os erros anteriores mas nunca podemos saber que as coisas se vão repetir com outra pessoa só por terem ambos o mesmo ramo de actividade… Temos de dar o benefício da dúvida e foi isso que a senhora fez.
– Hum! – discordou a mulher. – Eu devia ter calculado, doutor!... Qual benefício da dúvida qual carapuça… Isso é conversa de psiquiatra, doutor!... De psicoterapeuta!... A culpa é minha e ponto final, se com o outro já tinha sido o que foi…
Aceitei com um trejeito o argumento da paciente: ela tinha razão.
– Sabe o que eu lhe digo, doutor?
Acenei que não.
– Posso ser franca?
Acenei que sim, ainda que o lamentasse.
– O doutor desculpe-me mas isto não me sai da cabeça e… – fez uma ligeira pausa e preveniu: – E não é nada contra os pais deles. – A mulher olhou para a porta do gabinete para confirmar que estava fechada e voltando a fixar-me disse com ar de quem meditou no assunto: – Que fodas tão mal empregues, senhor doutor… O tempo que os pais deles perderam a fazê-los mais valia terem estado a… a… Nem sei o quê, doutor, nem sei o quê… Qualquer bodega que lhes tivesse ocupado aqueles trinta segundos tinha sido melhor empregue. Muito melhor…
– Às vezes as coisas não correm bem entre as pessoas – disse, sem convicção, olhando disfarçadamente para o relógio.
– Já está na hora? – perguntou a paciente, verificando o seu relógio de pulso.
– Já – informei com ensaiado pesar. – Para a semana continuamos.
A mulher expirou pelo nariz, ainda desimpedido, levantou-se, colocou as mãos sobre a secretária, olhou-me nos olhos e concluiu desanimada:
– Só comigo, doutor. Já viu bem a minha pouca sorte?... O Super-Homem foi o que foi, um fiasco do pior. Que pãozinho sem sal!... Agora, aparece-me o Homem de Ferro, todo cheio de basófia, que faz e acontece, e, no fim, vai-se ver… Gelatina, doutor, o homem devia chamar-se era Homem-Gelatina. Gelatina e pouco fresca!... Não tenho mesmo sorte nenhuma!
A mulher aceitou o meu aceno concordante com um sorriso e quando ia a sair, já depois das despedidas, perguntou-me com um brilho no olhar:
– Sabe com quem é que eu vou jantar no Sábado?
– Com o Batman? – lancei.
– Bolas! Nem pensar – respondeu, mostrando-me a língua com ar enjoado.
Sorrindo, a mulher abriu a porta, saiu e fechou-a.
Esperou um momento, reabriu a porta cerca de um palmo, espreitou para me encontrar no mesmo sítio, a olhar para ela, e anunciou, sorrindo e piscando-me o olho, antes de voltar a fechar a porta:
– Sábado vou jantar com o Homem-Queque!
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