08 outubro 2010

O Fígado

A discussão arrastou-se durante horas: começou ao jantar, agravou-se no levantar da mesa e no arrumar a cozinha, seguiu pelos zappings televisivos, encalhou e teve um período de tréguas numa série da fox, regressou na casa de banho e deitou-se com eles.
– Vais ler? – rosnou o homem, quando a viu debruçar para pegar no livro que andava a ler.
– Porquê, tens alguma sugestão melhor? – replicou a mulher, de livro na mão enquanto ajeitava a almofada.
A sugestão de que ele se lembrou envolvia contacto físico, troca de fluidos e, provavelmente, alguma comunicação. Calou-se.
“Bem me parecia…”, recriminou para si a mulher, antes de abrir o livro e tentar começar a ler.
– O nosso casamento é como o fígado de um bêbado – declarou ele, a olhar para o ecrã apagado pendurado na parede em frente aos pés da cama.
A mulher ouviu e levantou os olhos para a televisão, procurando nela uma explicação para a estranha e enfática declaração, mas confirmou o que já sabia: a televisão estava desligada.
– O quê? – perguntou ela a meio-tom, devolvendo os olhos à segurança dos diálogos que faziam sentido e às irrepreensíveis sequências de causas e efeitos, verdades e consequências, que, de forma confortavelmente previsível, iam surgindo nas frases perfeitamente alinhadas do livro.
– O nosso casamento é como o fígado de um bêbado – repetiu o marido, deleitando-se com a frase como se ela tivesse gosto ou aroma.
– Porquê? – murmurou a mulher, sem tirar os olhos do livro.
O homem seguiu-lhe o olhar e viu o livro aberto. Hesitou, pareceu-lhe que o livro era uma bóia que ela não queria largar; um pedaço de outra realidade para onde ela queria fugir. Repetiu a frase para si e achou que era uma belíssima frase e o livro aberto um insulto. Um desmesurado e imperdoável insulto.
– Por nada… – respondeu, encolhendo ostensivamente os ombros.
Ela conhecia-lhe as tiradas grandiosas e as frases dramáticas e sabia da normal ausência de conteúdo ou das enviesadas e longas explicações que as procuravam justificar. Já não tinha paciência.
– Está bem – aceitou. E recomeçou a ler.
Ele acendeu a televisão.

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