14 outubro 2006

O convite.



Por mais que ela se pintasse, por mais base que pusesse no rosto e trejeitos estudados com que presenteasse requintadamente os que lhe caíssem no universo imediato da sua presença, um breve relanço esgotado num simples piscar do olhar revelava-a numa total transparência.
Interrogava-me muitas vezes ao reparar nela a quem é que ela pretendia enganar.
Os movimentos estudados, o cuidado que punha na sua maquilhagem, tudo se esfumava numa palavra, no grotesco dum gesto deixado escapar, não inadvertidamente ou numa situação invulgar, mas como manifestação da sua verdade interior.
Sempre a achei vazia e desinteressante, numa palavra: vulgar; e foi com desagrado que confesso tê-la visto daquela vez aproximar-se de mim.
Estava no café da moda nessa época e no pendurar dum cigarro em frente a uma chávena já vazia, olhava por entre as letras do jornal e as pernas delas, para o teatro mundano dos que entram e saem para ver e serem vistos.
Fingindo não reparar, jogando o jogo das simulações, esquecendo como a linguagem do corpo é quem estabelece as regras e que um olhar atento tudo descodifica sem esforço.
Sorri…Sempre gostei de observar, de preferência com o espírito vazio, como se nem corpo tivesse. Entrar pelo pensar alheio dentro e sentir-lhes as emoções como se fossem as minhas. Fazer o jogo complexo de uns e de outros e sentir-me um aprendiz de Kasparov no tabuleiro infinito dum xadrez sem limites.
Mas ela chegou e interrompeu o meu exercício.
- Olá. Posso sentar-me? –
Sentou-se de imediato, sem esperar que eu me levantasse e fosse eu a reformular o convite, apresentando desculpas por não ter reparado, e pedir assim que tomasse lugar à minha mesa.
Mirei-a com a sensação desconfortável de quem sente o seu círculo invadido. Assim sem mais com o total à vontade da mosca que pousa no nosso prato após ter dado uma volta pelo caixote do lixo.
- O que pagas? - Disse olhando para mim intensamente enquanto cruzava as pernas puxando um pouco a saia curta.
- O que quiseres….Pede…-
Sabes que acabei com o Alfredo? –
Esperei um pouco antes de dar uma resposta e fiquei olhando para ela como alguém que tenta de repente encontrar algum nexo e profundidade ao entrar subitamente no escuro do cinema a meio dum filme.
Não sabia quem era o Alfredo, nem o porquê dela me estar a contar aquilo. Era-me indiferente. Não indiferente, mas estranhamente desagradável.
Olhava-me com os olhos lindos que tinha. Claros e profundos. Ela tinha sido muito bonita e conservava muito dessa beleza, mas sempre pensei nela como um insulto à beleza feminina. Achava-a vazia e buçal. Não por ser uma prostituta, mas por ser o que eu apelidava de ordinária. Não merecia o corpo que tinha dizia eu muitas vezes nos meus pensamentos.
- Quem é o Alfredo? – Disse finalmente sabendo que a iria magoar.
Olhou para mim incrédula. Como era possível que eu não soubesse quem era o Alfredo!
Toda a gente sabia que ela andava com o Alfredo!
O Alfredo enchera-a de prendas, levara-a a passear de carro descapotável e passara em frente ao café, onde agora estávamos, dezenas de vezes ao dia. Estiveram presentes nas marisqueiras e restaurantes. Iam aos bailes e eram vistos juntos e felizes por toda a banda! ....


....Cai no meu pensamento.
O Alfredo deveria ser um desses com que ela, de costume, andava um mês ou mês e meio para depois entrar na rotina dum engate aqui e ali, umas fodas de pensão ou numas sessões de carro, até encontrar outro, transitoriamente permanente, e recomeçar o ciclo idílico.
Pensei um pouco. Até poderia ser que soubesse quem era este Alfredo, surgiu-me num esforço de memória.
Dei por mim numa estúpida curiosidade. O Alfredo!?... Quem seria o Alfredo?
Despertei com o seu levantar da cadeira. Olhei para o seu rosto cheio do olhar brilhante de águas claras onde nascia em vermelho, a incompreensão de como poderia haver alguém que não soubesse quem era o Alfredo.
Afastou-se sem olhar para trás. O seu corpo bamboleando sensualmente travado pela saia curta que lhe evitava o passo apressado com que ela simulava desejar afastar-se dali.
Sem saber como levantei-me e em duas passadas pus-me junto a ela.
- Espera. Desculpa... – Disse-lhe olhando-a bem nos olhos agora num mar em cor de sangue. – Desculpa! - Repeti. - Vamos almoçar. Convido-te! Podemos falar um pouco num sítio mais descansado.
Dizes-me quem é esse….se quiseres... –
Sorriu por entre as lágrimas e saímos do café.
Pela primeira vez senti-lhe uma porta secreta abrir-se quando encostou o corpo a mim e me pegou no braço, olhámos para um e outro lado da rua e atravessámos as duas...

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