09 julho 2011

A Rapariga Vulgar (II)

(Sim, eu sei que a vida é a autora do livro da minha existência. Não posso escrever as páginas. Mas anoto furiosamente as margens, mas lanço-me e ocupo cada espaço que a vida esquece em branco. Porque a vida é demasiado grande, tão grande que não pode ver todos os seus detalhes, tão grande que muitas vezes não me vê; e essa é a minha vantagem, os seus pontos cegos são a janela onde inscrevo a minha vontade. Ainda bem que me sei infinitamente pequena.)

O Sr. António da retrosaria nunca gostou de se sentir pequeno. Encosta-se à porta do seu estabelecimento para que o olhar possa ir à rua, ao outro lado da calçada, atravessar de gozo o corpo da rapariga; julga que assim a corta ao meio, a metade do seu tamanho, e sente-se ainda maior. A rapariga encolhe os ombros e continua a tentar atrair o desejo e a bolsa dos que passam; a magreza e a saia demasiado curta pintam-na de vulgaridade mas não lhe retiram a beleza, pára um carro e alguém a convida a entrar. O Sr. António é a feição do desdém, lábios finos, uma linha feia de sarcasmo coberta por um bigode amarelado; troca comentários ordinários com o Sr. João da padaria: "lá vai com mais um, lá vai com mais um" e ri-se, seco, gordo, uma gargalhada trocista que lhe ensopa a flacidez do pénis. Corre para dentro da loja, enquanto finge continuar a rir, para que ninguém lhe veja a mancha da humilhação espalhada nas calças. O Sr. António nunca gostou de se sentir pequeno; agora, é o balcão que o corta ao meio; o riso trocista pasmado na cara contrai, nos olhos, o brilho da vergonha que lhe esborracha lágrimas através das órbitas e que lhe espalma o corpo pendente e molhado contra a barreira do balcão.

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