29 outubro 2009

O Tratamento

O homem sai e fecha a porta atrás de si, deixando o médico, o enfermeiro e a auxiliar entregues à rotina habitual que se segue a um exame: o médico vira-se para o computador e começa a escrever; o enfermeiro limpa com descuidado cuidado a máquina onde o paciente estivera e onde vai estar o próximo; a auxiliar, depois de acompanhar o homem à porta, aproxima-se da impressora de onde começam a sair as imagens efectuadas no exame, que recolhe e ordena.
– Mas tu conhece-lo? – pergunta o enfermeiro, quebrando o silêncio enquanto deita os toalhetes utilizados na limpeza do aparelho para o caixote do lixo.
O médico ainda levanta os olhos do teclado e das imagens que resultaram do exame e que a auxiliar entretanto já trouxera da impressora mas, ainda que perceba a pergunta e esteja igualmente curioso, torna a baixá-los e fica disfarçadamente à espera da resposta.
– A quem? – questiona a mulher, depois de uma hesitação silenciosa em que procurou os olhos do enfermeiro para perceber que a pergunta lhe era dirigida.
– Ao doente… – diz o homem. A auxiliar reforça o olhar de incompreensão. Ele explica: – Estavas a tratá-lo por tu... Tu isto, tu aquilo... Conheces?
– Conheço-o daqui – informa a auxiliar, sem dar importância à questão.
– Só daqui? – intromete-se, inadvertidamente, o médico.
A auxiliar sente a pergunta e a implícita insinuação ou censura, sem se conseguir decidir por nenhuma.
– Sim – responde, ainda assim melindrada. – Só o conheço daqui.
– Mas estavas a tratá-lo por tu – insiste o enfermeiro.
– Desculpa, para a próxima trato-o por você – diz a mulher, tentando concluir a conversa, enquanto coloca a ficha da doente seguinte ao lado do teclado que o médico usara e pergunta apontando a ficha: – Posso chamar, doutor?
– A mim não me tens de pedir desculpa – diz o enfermeiro, após uma ligeira pausa em que remoeu várias possibilidades de resposta e, ao mesmo tempo, tentava perceber porque se tinha ele metido naquele assunto que, claramente, não lhe dizia respeito.
– Pode, pode chamar o próximo – decide o médico, olhando a ficha da doente. – E diga ao doutor que, se quiser, se pode ir embora, que eu logo, ao fim da tarde, falo com ele…
– Qual doutor? – interrompeu, nervosa, a auxiliar.
– O teu amigo – mordeu o enfermeiro, com sorridente prontidão.
O médico olhou o enfermeiro com dureza e, de imediato, tornou a fixar a auxiliar, para que ela não respondesse, e concluiu:
– O doutor, o doente que saiu agora daqui.
– Não sabias que ele era doutor? – malhou o enfermeiro, com ar trocista.
– Sabia…
– Pronto – interrompeu o médico. – Vá lá chamar a D. Genoveva.
A mulher anuiu, respirou fundo e dirigiu-se à porta. Rodou a maçaneta e, antes de a puxar e abrir a porta, perguntou dirigindo-se ao enfermeiro:
– E quando eu der o recado ao doutor trato-o por tu, por doutor ou V. Exa. deseja que eu o trate de outra forma qualquer?
– Eu não quero nada – replicou o enfermeiro, aborrecido. – Por mim, tratas o homem como quiseres…
– Ah… Pronto, se é assim.
A mulher puxou a porta.
– Eu só achei estranho que tu estivesses a tratar o doente por tu, só isso – justificou-se o enfermeiro, encolhendo os ombros. – Só isso – repetiu com ácida bonomia, para ter a última palavra.
A auxiliar encostou a porta e, sem largar a maçaneta, disparou:
– Se o homem é simpático, é da minha idade, ouve-me com deleitosa atenção…
– Deleitosa?! – espantou-se o enfermeiro, gozando.
– Se não sabes o que é, vais ver ao dicionário!
– Sei.
– Mas isso não interessa nada, Henriques – menosprezou a mulher. – Onde é que eu ia?
– Ainda há mais? – disse o enfermeiro.
– Ia em que o homem é simpático, da sua idade e ouve-a com deleitosa atenção – enunciou o médico, como se lesse um relatório.
– Sim – sorriu a enfermeira. – Isso – e continuou: – Se o homem me ouve com deleitosa atenção, me olha com velada voracidade, se procura disfarçada e educadamente os espaços entre os botões da bata para me ver o contorno e volume das mamas, se procura divisar na lisura da bata a linha das minhas cuecas e a forma das minhas nádegas, se me sorri com os seus olhos brilhantes e um sorriso envergonhadamente guloso e sem malícia, que me anima e envaidece, porque é que eu não o hei-de tratar por tu?
O enfermeiro manteve-se calado, sem resposta, ainda que não fosse essa a sua vontade. O médico abanava ligeiramente a cabeça para cima e para baixo e sorria espantado.
– Eu não te trato a ti por tu? – perguntou a mulher fixando o enfermeiro. – Que me olhas sem vergonha, que me tiras as medidas com um despudor pornográfico, que me comes com os olhos não sei quantas vezes por dia sem sequer disfarçares, que te babas bovinamente para o meu decote, que te esqueces do resto quando me fixas o cu como se fosses um perdigueiro a apontar a caça, que… Que… – A enfermeira cerrou os lábios, ergueu as sobrancelhas, abanou a cabeça, abriu a porta e saindo virou-se para trás e perguntou: – Afinal, quem é que eu devia tratar por tu?

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