21 janeiro 2018

«pensamentos catatónicos (346)» - bagaço amarelo

Não estou apaixonado por ninguém. Não há nenhuma mulher especial na minha vida, se eu esquecer o facto que são todas especiais e de que a amizade também o pode ser. Não há nada de anormal nem de preocupante nisso, tirando o pormenor de que é a primeira vez que me acontece, apesar de ter quase quarenta e cinco anos de vida.
É uma experiência nova, portanto. Às vezes sinto-me mais livre do que nunca, outras vezes sinto falta dum abraço mais íntimo. É isso que sinto, de forma suave, nos dias que correm, mas sempre sem o desejo de voltar a apaixonar-me no segundo seguinte. Para meu conforto, vou acreditando que talvez um dia isso aconteça.
Houve uma excepção, ainda que ténue. Acho eu, pelo menos. Caminhámos pela cidade e bebemos vinho, contámo-nos um ao outro e trocámos olhares, abraçámo-nos e atravessámos passadeiras com o sinal vermelho para peões. Imaginei-me a viver com ela e a fazer isso mais vezes, atravessar no sinal vermelho em passo apressado e rir-me disso com alguma cumplicidade. Foi a única vez. Foi só imaginação.
De resto foi tudo em esforço. Ou quase. Acho eu, pelo menos. Tirando aquela vez em que falámos de comediantes e eu disse que não percebia como é que um homem pode exercer essa profissão todos os dias. E quando está triste? Perguntei. E se a mulher o deixou nessa manhã e ele tem que ir para a rádio contar piadas? Perguntei de novo. E ela encolheu os ombros. Depois bebemos vinho e adormecemos juntos. Quando acordámos não ficámos felizes por estarmos perto um do outro. Nem eu, nem ela. E eu despedi-me.
Às vezes caminho pela rua sozinho, de preferência em locais movimentados. Vou-me desviando dos outros com a perfeita consciência que eles são isso mesmo: outros. Foi o que fiz hoje. Lembro-me de um casal de estrangeiros que me perguntou a localização de um hostel, de um rapaz que passou por mim de skate a cantar uma música sem sentido, de uma mulher que me sorriu na porta de uma pastelaria e do padeiro que me disse para esperar pelo pão quente.
Depois sentei-me na estação de comboios, apesar de não estar a pensar apanhar nenhum. Lembrei-me de uma mulher, um Amor antigo numa situação específica. Ela a pedir-me para abrir uma garrafa de vinho, eu a encher-lhe o copo e ela a desaparecer pela porta da cozinha. Vai dar uma volta, disse. Não me apetece estar com ninguém por um bocado, insistiu. O ninguém era eu, até porque toda a gente naquela casa também era eu.
Esforçarmo-nos por nos apaixonarmos é um acto estúpido e inconsequente. A paixão nunca vem por esforço. Vem porque lhe apetece, seja amanhã ou daqui a cinco anos. Vem no dia em que eu tornar a atravessar na passadeira com o sinal vermelho, rir-me disso e no dia seguinte gostarmos de acordar juntos. Talvez nessa noite ela me peça para abrir uma garrafa de vinho e não saia da cozinha.
Até lá, apesar de não ter público, vou tentar ser comediante todos os dias.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»