01 julho 2010

A Chamada

A porta da viatura oficial fechou-se com estrondo protegendo o chefe do governo. O motorista passou-lhe o telemóvel avisando:
– O senhor doutor ainda está em linha.
– Arruaceiros, pá! – Queixou-se sua excelência o senhor Primeiro-Ministro para o telemóvel que, agora, já não precisava de mudar periodicamente. “Estou a afeiçoar-me a este” dizia, contemplando enlevado o aparelho. “Já há muito tempo que não tinha um telemóvel durante tanto tempo. É giro, pá. Já me tinha esquecido da prazerosa sensação de pertença e identidade que os nossos telemóveis nos transmitem, como se o aparelho fosse uma extensão do nosso ser, como se, de alguma forma, nos completasse, reflectisse e, por si só, nos ligasse aos outros e ao mundo. E este é a minha cara”, observava satisfeito mirando-se na superfície espelhada do telemóvel. Os assessores olhavam-no e acenavam ovinamente os esmerados couros cabeludos sem perceberem nada do que o homem estava a dizer. – Olha! – exclamou o Primeiro, vendo um ovo esparramar-se contra o vidro da viatura. – Olha para estes gajos, pá! Energúmenos!
– O que é? – perguntou o senhor doutor que se mantivera pacientemente ao telemóvel (que não podemos nomear – o senhor doutor, claro, que a divulgação da marca e modelo do telemóvel de sua excelência não está sujeito a qualquer cominação legal ou de outro género, julga-se).
– Vamos embora! – Ordenou o senhor Primeiro-Ministro ao motorista, que aquele não saberia nomear por ter tantos ao seu serviço. “Ao serviço do meu gabinete”, corrigiria o Primeiro se lesse isto. “Os motoristas estão ao serviço do meu gabinete, senhor narrador. Não esteja a desvirtuar a realidade com o intuito soes de achincalhar e cobrir com um manto negro de ignóbeis falsidades uma das mais sérias e honradas instituições da nossa democracia.” “Que instituição?”, perguntam vocês. “O Gabinete do Primeiro-Ministro”, responderia o nosso Primeiro, repleto daquela certeza que só os predestinados (ou os maluquinhos) têm, ainda que logo se corrigisse e sublinhasse: “Ou melhor, o meu gabinete de Primeiro-Ministro.” – Embora, homem! Vamos embora! – repetiu veemente o Primeiro, alheio às atoardas que o narrador lhe lançara mas não às que se esparramavam contra os vidros da viatura oficial.
– O que foi, Zé? O que foi? – insistia assustado o homem que falava ao telemóvel.
– Estão a atirar ovos ao carro – informou o Primeiro, mantendo exteriormente a compostura enquanto sentia o grande nariz enrubescer, as orelhas tremer, os lábios cerrarem até perderem a cor e os olhos esbugalhados raiarem-se de linhas vermelhas e de um brilho psicótico.
– Ovos?! – disse num gritinho o homem que tentava debalde conversar com o Primeiro.
– E tomates, pá – completou o Primeiro, esboçando a custo um sorriso nervoso. “Tenho de mandar escurecer os vidros do carro”, decidiu ao perceber a dificuldade com que se continha. – Tomates e… e…
– Ovos e tomates?!
– Tomates e outros genitais…
– Vegetais?
– Não, genitais, porra. Genitais, mesmo!... Estão a mandar-me genitais.
– Genitais?! – murmurou perplexo aquele que não podemos nomear. – Mas… Mas fazem os genitais com os dedos? – perguntou o senhor doutor, engasgado, sem conseguir imaginar como é que se efectuava e concretizava o arremesso de órgãos sexuais contra a viatura oficial do chefe do governo.
– Não, pá! – Irritou-se mais o Primeiro, observando com visível repulsa uma impressionantemente naturalística vulva que ia escorrendo lentamente pelo pára-brisas. – Estão a atirar-me coisas de borracha, pá! Pénis com testículos, pénis sem testículos, vaginas, vulvas…
– Qual é a diferença?
– Sei lá qual é a diferença, pá – disparou sua Excelência, furibundo.
– E mamas? – perguntou o outro num tom alegre e entusiasmado, sem saber porquê.
– Mamas?! Mamas, Armando?! – [nota: o nome foi aleatoriamente escolhido da lista oficial do registo civil de nomes masculinos e não corresponde a qualquer pessoa em concreto.] – Tu estás doido, pá! Estão a atirar ovos e genitais ao primeiro-ministro do teu país e tu estás preocupado é se me atiram mamas, pá?! Mamas, Armando?! Tu estás doido?! Porque é que raio haviam de me atirar mamas, pá?! Mamas?! Vai-te lixar, pá! Vai-te mas é lixar! Mamas é para meninos!
– Ó Zé…
– Nem Zé nem meio Zé! Bardamerda, pá! Vais mas é encher o bandulho de robalos – [nota: podia ser outro peixe] –, de preferência vestidinho com o equipamento do Esmoriz! – [nota: podia ser outra agremiação desportiva.] – Vai-te lixar… Agora mamas… Eu sou o Primeiro-Ministro, pá, estou habituado à contestação, aos apupos, às vaias da populaça. Às manobras espúrias e às campanhas negras. Aos palavrões, aos dedos em riste e, agora, aos genitais, pá! Os genitais valem o que valem, pá! E a maior parte deles não valem nada, pá. Nada! Mas isto ao menos é contestação à séria. Pénis e vaginas! Agora mamas, pá, mamas é para meninos! Um primeiro-ministro que faz, que decide, que dá o passo em frente, tem de ser vaiado à grande, à séria, à homem!... E mais, pá, e mais: quem leva com vegetais são os falhados! Agora com genitais…
– Ah! Bem… – interrompeu Armando, azedo, ainda com uma espinha de robalo cravada na garganta e com o equipamento do Esmoriz a apertar-lhe nos sovacos [nota: o nome, o peixe e a agremiação podiam ser outros]. – Isso é verdade, Zé. Isso é verdade! Isso é de um grande estadista. Genitais não é para todos… Agora tens é um problema…
– O ácido com muita estriquinina?
– Não – respondeu Armando, com cultura musical para perceber a graçola mas sem vontade de rir. – Se a moda pega nunca mais podes ir às Caldas…
– Então?
– É que lá são de loiça – e desligou.

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