07 setembro 2006
O Chefe...
- Sr. Silva…, – Disse enquanto se fazia rodar muito lentamente na cadeira, de cotovelos apoiados nos encostos de braços. Tinha recebido o desgraçado do funcionário de costas voltadas para a porta, deixando-o especado, enquanto fingia um tremendo aborrecimento, os polegares apoiados nos queixos e os outros dedos esticados e unidos, de indicadores junto ao nariz, e que ele agora abria e fechava em frente à boca, tamborilando uma enervante coreografia à medida que sissiava por entre os dentes o vestígio indecifrável duma surda melodia.
Largos minutos se haviam passado num silêncio absoluto, sepulcral, e ele, o chefe, sabia como tirar todo o partido da postura teatral e densa na atmosfera que ia criando. Sem que fosse necessário proferir nessa fase uma única palavra, tudo ia escurecendo numa ameaça de tempestade sem hora anunciada.
- Senhor Silva…. – Retomou enquanto olhava para ele de olhos fixos no olhar que o seu interlocutor nervosamente fazia por não cruzar com o seu.
- Hoje, para cimentar uma conduta que já se lhe vai tornando um hábito, chegou outra vez atrasado! -
Esperou um pouco, gerindo o silêncio enquanto mirava sobranceiro para o funcionário.
-.Pronto Silva!… Nem precisa de dizer mais... Foi o casamento da sua irmã neste fim de semana e a segunda-feira a seguir a um festejo, já sabemos como é. Escusa de vir para aí com a conversa do costume, com argumentos da treta e patati, patatá, e saco de palha e por ai fora.... O senhor tem sempre uma desculpa, Silva!
Ora é uma coisa ora é outra, umas vezes o carro outras vezes o transporte, ou tem alguém doente, hoje foi o casamento…Enfim Silva, enfim… –
Tinha proferido as palavras no tom certo com que sabia ir produzir o efeito pretendido. Começara lentamente com voz grave evoluindo no discurso para momentos de grande ênfase, quase gritando, cuidando meticulosamente do valor das inflexões nas momentos certos.
À sua frente, o Silva, que nem tinha tido coragem, nesta última fase, de levantar a cabeça, fitava os pormenores do chão. Quadradinho aquí, um pormenor do rodapé com um risco de sapato alí. O fio o telefone enrolado a trepar por entre a folhagem duma franzina planta interior, e subindo o olhar, deslizava pela incontornável moldura em cima da secretária no extremo oposto ao monitor do computador passando depois um breve relance à expressão de desagrado do seu superior. Voltou de imediato para baixo. Para o abrigo dos pequenos pormenores, ao nível dos sapatos, enquanto a sua mente vagueava de novo pelos instantes intensos acabados de viver, poucos minutos antes de estar ali.
O chefe continuou. Poderoso. Teatral. Quase paternal. – Sabe que esta empresa tem crescido e prosperado. Muito pelo brilho e dedicação do seu círculo de colaboradores onde eu o tenho incluído ao meu serviço, mas principalmente pela disciplina e a observância dos regulamentos internos.
Percebe Silva? Entende como é importante respeitar as regras?
É isso que incute em todos os elementos da cadeia de produção e serviços a noção de pertença a algo maior, uma obra colectiva onde todos tem orgulho no seu papel, onde todos sabem ser indispensáveis na medida em que a sua falta compromete os outros sectores, atrasando todo o desempenho do conjunto.
Você é um mau exemplo para esta empresa senhor Silva!
Um mau exemplo! Um irresponsável!
Nem sei como o tenho ainda a trabalhar connosco. –
Num assomo de coragem, o Silva levantou o olhar e engolindo em seco atreveu-se com um breve: -Chefe…foram só oito minutos. -
Ficou olhando para a cara mista de raiva e zombeteira do chefe.
- Peço que me desculpe mais uma vez. – Balbuciou. - Compensarei a empresa trabalhando até um bocado mais tarde, e … -
Uma urgente batida à porta fê-lo despertar de repente e dar um salto na cadeira.
- Silva! – espreitou alguém pela nesga da porta enquanto repetia.
- Oh Silva!
Prepara-te. O chefe está a chamar-te.
Hoje está naqueles dias que ninguém o atura.
Ainda por cima tiveste um azar do caraças, ele estava à janela quando chegaste, e nem te valeu de nada entrares com o carro lá para a ponta do parque e vires para o teu gabinete de mansinho para passares despercebido. Tás bem fodido pá. Prepara-te para a piçada! Nem queria estar na tua pele! Foda-se... –
- Obrigado Miguel, - Suspirou levantando-se lentamente da cadeira. -... vou já…-
Encostou a porta, e inspirou fundo, ajeitou a gravata e preparou-se para sair.
Repentinamente, uma vibração no bolso, o telemóvel a tocar.
- Sim…? Oh minha querida. Meu amor…- Disse em voz baixa, seguido duma breve pausa enquanto escutava.
- Também já eu estou cheio de saudades, e ainda agora acabámos de estar juntos, trago nos meus lábios o sabor dos teus, da tua pele, do teu sexo. Tenho a alma toda iluminada com o brilho dos teus olhos e a tua voz faz-me estremecer todo por dentro…
És linda. Adoro-te meu anjo, e assim que puder vou ter contigo.
Olha, mas tenho de desligar agora. Ligo-te depois mais tarde amor.
O quê? Problemas?
Não!
Nada de especial.
É já o costume…Mandaram-me chamar agora mesmo ao gabinete do teu marido…-
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