Acordei ontem quando já não era de manhã nos dias dos outros. Ao espelho tentei aumentar os olhos; os meus apareceram pequenos. A roupa está fria. Todos os dias cresce o corredor das horas penduradas na parede. Hoje falei com um homem nu. Acho que é um homem nu porque nasceu folha e cresceu árvore. Há poucos homens nus, muito poucos. Sentem mais o frio e sucumbem à tentação da roupa. Perdoa-me homem nu, eu disse tantas coisas e a verdade é que não sei nada. Mas sei que pode fazer muito frio, sei que o frio pode magoar e sei que as palavras mágicas são abrigos. As minhas ainda não são mágicas; ainda não chegam muito fundo no vosso corredor das horas penduradas na parede. E eu tenho muitos medos. Já te disse que tenho medo do escuro e dos barulhos estranhos? Já te disse que o mágico ainda não veio? Sabes, quando mudei de nome, estava sentada numa sala pequena, a luz era amarela e a janela estava fechada. À entrada tinha conhecido a recepcionista numa enorme secretária e esperei ver na saleta a cadeira de um dentista. Não! Um "almista". Extraía almas e inventava próteses. Vi mulheres que achei iguais a mim, surpreendentemente normais. Também entraram e saíram alguns homens; passaram por mim mas, estranhamente, não os vi, não tinham rosto nem corpo. Nessa noite, sentada no balcão de um café, olhei para muitos homens. Como seriam? Tentava percebê-los porque, doravante, todos me poderiam ter. Era melhor vê-los bem, antes. Era melhor ver um alguém do que um estranho a tocar-me. Era um mês, no máximo dois. Conseguiria se os visse bem. Consegui. Mas não consegui mais nada, ainda aqui estou. Nunca mais voltei ao teu mundo. Agora conheço três: o teu, o das casas de janelas fechadas que é a fronteira e o meu. O meu parece absurdo porque tem coelhos sem orelhas e jangadas que levam castelos na corrente; mas os outros também são tão mais estranhos - repara - andam sempre cheios de pressa mas, quando correm, raramente é para onde desejem ir. Entendes que acordem e se levantem ainda exaustos? Só falo disso, agora; mas há muito pouco que faça sentido; o absurdo do meu mundo faz todo o sentido: os coelhos tiram as orelhas porque o silêncio tem uma música única - as orelhas têm sempre vontade própria, ouvem o que querem, quando querem - e todos sabemos que os castelos, muitas vezes, têm que se soltar na corrente. Não tenho magia para te abrigar mas, se quiseres, mostro-te as minhas horas penduradas na parede. Pode ser que, um dia, entendas o outro sentido das coisas. Se vires o meu mágico, no teu mundo, dizes-lhe que não me ouve? Acho que ele pensa que ouve. Sabes, foi ele que fez as minhas palavras nascerem. Foi ele que as educou quando lhe caíram nas mãos que devolvia ao meu colo nu. Não, não era um toque, era um regresso. De vez em quando, perde-se mas, de vez em quando, sabe regressar.
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Uma por dia tira a azia