O rapaz atirou-se para o chão logo da primeira vez que os nós de uns dedos se encontraram com a madeira da porta do quarto.
– Sim? – conseguiu a rapariga dizer, concentrando-se para que o som saísse.
O pai abriu a porta, viu a cama desmanchada como num cenário de filme e a filha pudicamente tapada com o lençol quase até ao pescoço, olhando-o desorbitada e afogueada mas com um livro na única mão visível.
– Ah… – O pai sonorizou assim a sua surpresa e embaraço e, sem largar a porta, nem entrar no quarto, comunicou em tom pastoso mas sem baixar as sobrancelhas que se colaram à franja: – É só para avisar que eu e a mãe vamos sair agora. Se precisares de alguma coisa, liga-nos, a mãe deixou o número ao pé do telefone.
– Está bem – respondeu a filha, tentando que se definisse um sorriso normal no seu rosto. – Se for preciso eu ligo – confirmou, no meio de esgares e caretas indefinidas.
– Não vais sair? – perguntou o pai, começando a fechar a porta do quarto.
– Não, hoje não – disse prontamente a filha, com ar angelical.
– Até amanhã, então – despediu-se o pai e fechou a porta.
O namorado ergueu a cabeça com lenta cautela e ela sorriu-lhe luminosamente:
– Eu bem te disse que devíamos ter esperado que eles saíssem.
– Achas que ele desconfiou? – perguntou o rapaz, num sussurro, ainda deitado ao lado da cama.
– Achas?! – respondeu ela, já segura de si e troçando do ar apavorado dele. – Achas que eles se iam assim embora se desconfiassem que estavas aqui?
Ele concordou com a cabeça mas não se mexeu. Viu-lhe o livro na mão e olhou para a porta fechada.
– Só saio daqui quando ouvir a porta e o portão da rua – declarou e, voltando a fixar o livro, perguntou: – Que livro é esse que estás a fingir que lês?
– 1984 de George Orwell – disse a rapariga, levantando o livro. – E não estou a fingir, estou mesmo a ler!
O rapaz abriu um sorriso em resposta ao tom sério e quase sentido da última frase e gracejou:
– Mas hoje não... – O rapaz calou-se ao ouvir a porta da rua bater.
Olharam-se e, entre sorrisos silenciosos, esperaram e ouviram o portão e o automóvel a arrancar.
– Não, esta noite não – concluiu ela, largando o livro. – Esta noite não é noite de leituras!
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