Continuamos a enterrar os nossos mortos sem nunca conseguirmos enterrar os seus fantasmas. Sim, eu vejo-os, eu vejo os fantasmas, os meus, os teus, os nossos e os que ficam a segredar, sem dono, no vão de todas as escadas onde não soubemos esperar; esta é a verdade, a nossa verdade, eu vejo-os se não olhar para o espaço vazio; faz tão pouco tempo que decidi não me debater mais, nunca mais tentar enterrar as sombras, desperdiçar violência ao tentar conter debaixo de terra o que não tem pele por onde agarrar, o que passa entre todos os grãos. E vejo o teu olhar quando a fome te invade o corpo inteiro, vejo o teu olhar que me pede perdão, vejo-te hesitante, entre a máscara e o rosto nu, não consegues cortar o laço, quando te ofereces nunca o fazes sozinho, eles estão sempre e já ali, dizes que te desculpe, que te perdoe, que te deixe entrar mesmo assim, está muito frio no vão da escada. Mas eu sei, eu sei faz algum tempo, tantas vezes percebi, quando me deitava, que o toque frio não podia ser o teu joelho, que o toque frio não podia ser o teu. E continuo deitada sob ti, e saberás que abro mais os braços e ergo mais as pernas e aumento o espaço que há em mim; quando te enterras, assim, inteiro, em mim, enterras também, por momentos, todos os teus fantasmas; eu deixo-vos entrar, meio casulo, meio armadilha, enrolo-vos de braços à volta das costas, de pernas à volta da cintura, bem presos, são o peso morto do teu corpo vivo; quando vos beijo hão-de chegar ao fundo do fundo de mim. Não, não te vou perdoar, não não me peças que te perdoe, não entendo o que haja para desculpar; todos nós trazemos fantasmas e, quando eles nos agitam, alguém terá de os amar por nós e eu hei-de amar os teus.
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Uma por dia tira a azia