05 dezembro 2012

«pensamentos catatónicos (279)» - bagaço amarelo

vinho

A Sílvia não me foi receber à porta, como é normal nela. Estava deitada no sofá, sem ligar nada às imagens que iam passando no enorme televisor sem som. Limpei, fazendo propositadamente mais barulho do que o normal, os sapatos no tapete da entrada, e então ouvi-a mandar-me entrar.
- Entra!
É-me difícil explicar o que a Sílvia significa para mim, talvez por significar tudo e nada ao mesmo tempo. Não somos propriamente amigos íntimos. Conheci-a, há já muitos anos, num jantar de aniversário de uma amiga comum. Depois acabámos por sair algumas vezes os dois. Íamos ao cinema, beber um copo a um bar qualquer ou, muito simplesmente, tomar café depois do jantar. Nunca, em vez alguma, senti um prazer especial pela sua companhia. Tenho a certeza que ela também nunca o sentiu pela minha. Mesmo assim, por qualquer motivo que nunca consegui explicar a mim mesmo, insistimos sempre em manter contacto um com o outro.
Já me senti totalmente apaixonado por algumas mulheres por quem, a partir de determinado momento, a coisa esfriou de tal forma que nunca mais as vi nem tive vontade de ver. Com a Sílvia, digamos assim, nunca tive uma relação quente, mas a verdade é que também nunca congelou. De vez em quando, sem nenhum motivo aparente, um de nós acaba por telefonar ao outro. Sem ser uma amiga do peito, é uma certeza da minha vida, e já tive momentos em que pensei que isso é mais importante do que qualquer outra coisa.
Foi assim que acabei por ir, mais uma vez, a casa dela. Tinha-me telefonado e dito, da mesma forma pragmática do costume, que sentia fome e não tinha vontade de cozinhar. Propus-me a passar em casa dela com uma garrafa de vinho, um frango de churrasco picante e uma salada de alface com tomate.
- Então, o que é que se passa? - perguntei enquanto abria a garrafa de vinho a custo, com uma imitação barata de um canivete suíço.
- Sinto fome. Não sinto mais nada. - respondeu ela ainda deitada no sofá.
- Mais nada?
- Mais nada. Não me sinto triste nem feliz, não me sinto apaixonada nem com vontade de me apaixonar. Tudo o que sinto tem estritamente a ver com as necessidades prementes do meu corpo: fome.

É isto que é estranho na Sílvia. Ela diz-me o que se passa com ela, de forma sucinta e resumida, e eu percebo-a tão clara e imediatamente que chega a ser assustador. Às vezes acho que é por sermos os dois tão parecidos que a nossa relação nunca aqueceu. Nunca discutimos, nunca discordamos. A vida a dois seria uma seca.
Fui à cozinha buscar dois pratos, dois garfos, duas facas e dois copos. Distribuí tudo na mesa da sala onde já estava uma toalha usada e com alguma nódoas antigas. Comecei por servir-lhe um copo de vinho que adivinhei ser necessário para que ela se conseguisse levantar e, finalmente, sentei-me à espera.
- Sentes-te só? - Perguntei adivinhando a resposta.
- Tenho-me sentido, mas apenas quando estou entre pessoas. No emprego ou na rua, por exemplo.
Ela levantou-se e veio para a mesa. Já tinha o copo vazio e servi-lhe outro. Vi-a sorrir pela primeira vez.
- Podemos jantar em silêncio, sem conversar? - Perguntou.
- Podemos.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»