Acho que me enganei, durante grande parte da minha vida, sobre essa noção comum que é ser simplesmente amigo de alguém. Talvez por causa de expressões como aquela que diz que se tira a camisa por um amigo. Lembro-me de a ouvir, por exemplo, relativamente a um homem que frequentava um café mesmo ao lado da casa onde cresci. Ouvi dizer que ele, durante a sua vida, tinha provado que era capaz de tirar a camisa pelos amigos. Ganhei-lhe respeito mesmo sem o conhecer, mas passei a estranhar a sua condição.
Era um homem só, tão encolhido quanto envelhecido, envolto numa enorme nuvem de solidão. Cheguei a pensar que eram os pequenos copos de bagaço, que bebia de forma trémula, que o mantinham vivo. Eu devia ter uns doze ou treze anos e fiquei com uma enorme curiosidade pela vida dele. Pelo pouco que sabia, para além de dar a camisa pelos amigos, tinha sido um activo revolucionário antes da Revolução de Abril e torturado várias vezes nas cadeias da PIDE.
Houve uma tarde em que eu estava a ler um livro nesse café (para quem conhece Aveiro, estou a falar do Convívio há cerca de trinta anos) e ele estava, como habitualmente, a beber alguns bagaços e a ser devorado por cigarros sôfregos, que fumava uns atrás dos outros como se quisesse antecipar a própria morte. O silêncio sepulcral dessa tarde foi invadido por gritos dum novo cliente, completamente alterado, que entrou no estabelecimento a chorar e a partir os cinzeiros de vidro que se encontravam nas mesas. Os empregados chamaram imediatamente a polícia e, em grupo, agarram-no e mantiveram-no preso numa cadeira.
Antes que a polícia chegasse, vi o homem capaz de tirar a camisa pelos amigos levantar-se, acalmar todos os presentes, e pedir para ir lá fora dar uma volta com aquele suposto tresloucado. Lá acabaram por soltá-lo e saíram os dois para a rua. Eu continuei a ler.
Já não me lembro muito bem, mas voltaram os dois, passada talvez um hora. Sentaram-se à mesma mesa a conversar. Tudo estava calmo e o café acabou por ser indemnizado pelos cinzeiros partidos. A polícia, entretanto, já tinha chegado e partido sem poder fazer nada.
Esta história seria apenas mais uma história sem importância nenhuma, não fosse eu ter conhecido pessoalmente, no mesmo café uns dez anos mais tarde, esse meu ídolo de infância. Um dia, já nem sei bem como, acabámos na mesma mesa a conversar. No princípio senti-me um miúdo imberbe perante ele, mas fiquei imediatamente à vontade quando ele me disse para o tratar por "tu". Acabei por lhe contar tudo o que sabia dele, mesmo sem o conhecer, incluindo essa coisa pela qual ele era conhecido: tirar a camisa pelos amigos.
A resposta dele surpreendeu-me tanto, mas tanto, que nunca mais a esqueci.
- Eu não tenho amigos, tiro é a camisa por todos os homens que precisarem que eu o faça, porque são homens, tal como eu. Ser amigo é muito fácil do que isso. Se uma amizade não for fácil, então não é amizade.
Fiquei de boca aberta e ele continuou.
- É assim que gostamos duma mulher, quando a nossa relação com ela é fácil, então estamos a falar de Amor.
Por um momento percebi aquela permanente aura de solidão que o acompanhava. Tinha estado apaixonado por uma mulher que já morrera e não se sentia capaz de se renovar emocionalmente. Disse-mo com um enorme hálito a bagaço, mas às vezes é esse o hálito mais sincero que se pode encontrar no mundo.
bagaço amarelo
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