Pegou no maço de Definitivos, tirou mais um cigarro e acendeu-o.
Como acontecia há várias noites, a insónia vencia-o e assim como as cinzas fatídicas do cigarro se pulverizavam, também as ideias se lhe esfumavam, incapaz de as encadear, de forjar um raciocinio coerente.
Ali do alto do Penedo da Saudade, os olhos espraiavam-se pelo vale do Calhabé, corriam sem se deter pelo estádio municipal, pela igreja de São José, pelo apeadeiro do comboio e quedavam-se no extremo nascente do planalto onde tinha sido plantado, numa geometria irrepreensivel, o casario do Bairro. Era ali que dormia a sua amada, lá para os lados da Rua da Guiné.
Nunca se tinham falado, mas apaixonara-se por ela desde o primeiro dia em que a viu num baile do Greco para onde tinha sido convidado por um colega de faculdade há um mês atrás.
Névoas silenciosas vindas do Mondego e do Pinhal de Marrocos começavam a cobrir lentamente, em farrapos obliquos, as casas do vale deixando aqui e ali a descoberto os fantasmagóricos picos das suas chaminés, como pontas de jazigos, numa desolação madornal de cemitério, sepultando e escondendo no seu ventre os funcionários, os operários e os camponeses que habitavam aquele plácido e húmido recanto da cidade ainda rural, planificado na bruma.
Mal adivinhava o seu pai, lá longe em Mangualde, que, com sacrificios imensos o mandara estudar em Coimbra para ser doutor, alugando-lhe um quarto numa casa perto do convento das Carmelitas e do Penedo, que o seu filho Pedro, em vez de pegar nos livros, passava as noites a esfumaçar à janela, de coração apaixonado, obstinado naquele bairro.
Ou, melhor dito, numa determinada casa daquele bairro.
Ou, para sermos mais precisos, na janela daquela casa onde dormia o seu amor.
Mal começou a romper a aurora, passou a cara por água, tentando disfarçar as olheiras profundas, penteou-se, vestiu a capa e batina, meteu dois livros debaixo do braço e saiu de casa.
Em vez de se dirigir à Universidade para ir às aulas, desceu a pé pelo Cidral, estugou o passo com a capa a ondular e dirigiu-se até à passagem de nivel. Como de outras vezes, era ali que esperava que ela passasse para ir às aulas do Liceu Feminino onde frequentava o 7º ano.
Nunca antes lhe tinha falado, mas desta vez estava resolvido a abordá-la e a declarar-lhe o seu amor.
Pouco depois, viu-a descer a rampa que vinha da Rua de Angola em direcção ao apeadeiro, acompanhada de outras colegas, numa algazarra juvenil, de gargalhadas e dichotes.
Mas o seu coração baqueou. Num amplexo apertado, um rapaz envolvia a Graça com o braço em redor dos ombros.
Afinal ela já namorava!
Desistiu de lhe dirigir a palavra.
Macambúzio, acabrunhado, com o coração a sangrar de desgosto, virou costas em direcção à paragem do Calhabé para ir apanhar o trolley para a Universidade.
Muitos anos mais tarde, o Dr. Pedro Matias, já médico em Mangualde, viu a Graça entrar-lhe no consultório, pedindo-lhe que a observasse e medicasse. Precisava de se tratar de uma gripe que a vinha apoquentando há uns dias e aproveitara uma diligência no tribunal de Mangualde para ir ao médico.
Era agora advogada em Nelas...
Reconheceu-a, falaram de Coimbra, do Bairro e do Greco.
Receitou-lhe umas aspirinas que é prescrição que nunca falha.
Só então o Pedro ficou a saber que aquele rapaz que a abraçava, naquele tenebroso dia no apeadeiro, era o irmão da Graça que se dirigia para as aulas no D. João III, acompanhando-a até ao Infanta D. Maria.
Rui Felício
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