Os belos olhos azuis melancólicos denunciavam uma tristeza indisfarçável, os lábios bem desenhados num rosto lindissimo, apenas se abriam em meios sorrisos de circunstância quando tinha que atender a algum pedido de informação ou esclarecimento que lhe fosse dirigido pelos clientes.
A Sónia era uma excelente profissional, educada, cumpridora, assidua e pontual, o que lhe granjeara a admiração e respeito dos seus superiores hierárquicos, alcandorando-a ao cargo de supervisora naquele supermercado de uma conhecida cadeia de distribuição.
Embora já passasse dos 30 anos de idade, não lhe eram conhecidos namorados passados ou recentes.
Todos os dias chegava a casa onde vivia sozinha, perto do supermercado, poucos minutos depois de acabar o trabalho. Recusava sistemáticamente convites das colegas para alguma festa e nos dias de folga trancava-se em casa entretida a ver televisão ou filmes que alugava numa loja da galeria comercial anexa ao supermercado.
Há dias entrara ao serviço, na secção de charcutaria, um novo empregado. O Tiago era um homem jovem, bonito, calado, de 35 anos, que vinha aureolado como um conhecedor profundo da área onde ficara a trabalhar. Por uma e outra vez o Tiago reparou no olhar da Sónia fixado em si, que ela, célere, afastava disfarçamente com visivel atrapalhação, quando o dele se cruzava com o dela.
As trocas de olhares passaram a ser mais frequentes nos dias seguintes, acompanhados de sorrisos imperceptiveis e cumplices.
Não havia dúvidas de que o Tiago não era indiferente à Sónia, apesar dos avisos dos colegas dele de que não deveria entusiasmar-se porque ela era uma belissima pedra preciosa mas fria como o gelo.
A verdade é que o Tiago já não conseguia dominar o pensamento que o acompanhava dia e noite.
Se estar apaixonado era sentir aquele aperto no coração, aquela constante e obsessiva imagem da Sónia na sua cabeça, a falta de apetite, os suspiros que soltava deitado sozinho na sua cama à noite a pensar nela, então ele estava perdidamente apaixonado por ela...
Na semana seguinte estariam ambos de folga no mesmo dia e ele decidiu, na véspera da folga, chamá-la à parte e pedir-lhe que aceitasse o seu convite para irem jantar os dois.
A Sónia fez questão de esclarecer que gostava muito dele, mas que preferia não aceitar o convite.
O Tiago mostrou-se surpreendido. Teria ela alguma razão para a recusa? Insistiu. Assegurou-lhe que a respeitava, que não a estava a convidar com qualquer reserva mental..
Pediu-lhe que percebesse que a sua intenção não era mais do que poderem estar juntos, conversarem sem os constrangimentos naturais do ambiente profissional. Enfim, conhecerem-se...
Ainda relutante, ela aceitou.
Naquele pacato e acolhedor restaurante, à luz suave das velas, conversaram, riram com as picarescas histórias que sempre se passam num movimentado supermercado, confirmaram que ambos viviam sozinhos, repetindo diariamente os ciclos de uma vida redonda, solitária, sem perspectivas, nem ambições. O vinho que iam bebendo desatava-lhes a pouco e pouco as inibições. Parecia conhecerem-se desde sempre!
Decidiram ir a pé para prolongarem a proximidade que a ambos tanto satisfazia. Chegados à casa da Sónia, ela abriu a porta, agradeceu-lhe aquela bela noite que jamais esqueceria, aproximou os labios e deu-lhe um beijo suave, breve, afagando-lhe carinhosamente o braço, numa despedida.
Mas em vez de se afastarem, ficaram ambos, por longos segundos, quase petrificados com as bocas perto uma da outra, sem se tocarem, aspirando o hálito quente que os enlouquecia.
Não resistiram mais. Envolveram-se num profundo beijo, longo, sôfrego, devolvendo e retribuindo o desejo que lhes queimava os corpos.
Encostaram-se à porta, que abriram bruscamente, e deram por si, sem saberem bem como, deitados na cama, arrancando as roupas, acariciando-se, prontos para levar até ao fim a loucura do amor.
O Tiago não percebia porque razão é que a Sónia se fechava, de olhos aterrorizados, sempre que ele tentava consumar aquele acto de amor que, claramente ambos desejavam, mas que ela impedia e restringia às caricias, aos beijos, aos sussurros de amor...
Deitou-se a seu lado, incrédulo, exausto.
Perguntou-lhe delicadamente porque não queria ir até ao fim. Parecia ter medo, apesar do carinho e cuidado que ele tinha tido.
A Sónia de lágrimas nos olhos confessou-lhe o seu segredo, a cruz que carregava em silêncio desde os 15 anos de idade, nunca se libertando desde então do terror e do medo do acto sexual.
Mostrou-lhe duas profundas cicatrizes que lhe atravessavam as costas em diagonal, resultado das chicotadas que o padrasto lhe desferiu com um cavalo marinho, furioso, quando ela lhe disse estar grávida e quando tentou resistir a mais uma das frequentes violações do padastro de que foi sendo vitima durante mais de um ano.
Rui Felício
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