11 maio 2013

«está uma noite óptima para nos pormos a caminho de lugar nenhum.» - bagaço amarelo

Não sei bem o que é me levou a dizer-lhe aquilo. Se acreditar que as coisas podem sair do nada, então diria que foi isso mesmo que aconteceu: saiu-me do nada. De qualquer maneira não acredito nisso, por isso limito-me a assumir que não sei porque é que aquelas palavras me saíram da boca.
Estávamos de férias num parque de campismo há alguns dias, algures no norte do país, ambos hesitantes em começar um romance. Era de noite. Por um lado queríamos dormir juntos, por outro tínhamos medo de o fazer. Acho que é sempre assim quando se gosta muito de alguém mas não se está apaixonado. Perguntei-me muitas vezes sobre o que devia fazer naqueles momentos em que nos abraçávamos ou encostávamos a cabeça um no outro. E agora? Beijo-a? Digo-lhe que a Amo? Nunca me decidi por nada, a não ser por lhe dizer a coisa mais absurda do mundo. Do nada.

- Está uma noite óptima para nos pormos a caminho de lugar nenhum.

Ela olhou para mim e, ao contrário do que eu tinha imaginado, concordou com a minha ideia nonsense. Obrigou-me a desmontar a tenda, a arrumar a mochila e, depois de acordar um homem que dormia ao balcão da recepção, acabámos por nos pôr a caminho através das estradas sinuosas do distrito de Bragança, onde tínhamos chegado de autocarro e à boleia de um amigo.
Caminhámos a noite toda numa conversa amena, até a Lua se cansar de nos ouvir e se ir embora sem dizer adeus. Lembro-me que acabámos por montar a tenda junto a uma curva onde havia uma fonte e, a alguns metros, uma árvore com sombra suficiente para não morrermos com aquele calor abrasador próprio do Verão transmontano. A minha tenda montava-se em três segundos. Bastava atirá-la ao ar e já estava. Foi o que fizemos e, dado o cansaço, adormecemos imediatamente os dois.
Não me costumo lembrar dos meus sonhos, mas sei que nessa tarde sonhei com ela e com as histórias que ela tinha acabado de me contar nessa viagem a pé pela Via Láctea. Era uma história qualquer sem grande romance, mas que eu tinha ouvido com a maior das atenções. Era sobre coelhos.
Ela gostava muito de animais, particularmente de coelhos. Tanto, que fazia colecção de coelhos de toda a espécie e feitio: de peluche, de louça, de plástico e até um de arame, feito por um artesão boliviano qualquer com quem tinha namorado no passado. Quando o tal artesão voltou para a Bolívia ainda estavam apaixonados,. Ele prometeu-lhe fazer um coelho tão grande quando lá chegasse, que ela havia de o ver deste lado do Atlântico. Durante muito tempo, apesar de ela não acreditar que isso fosse possível, ia à janela todos os dias para procurar o tal coelho gigante.
Pois bem, eu sonhei que tinha construído esse coelho. Era tão grande que, quando estávamos em cima dele, podíamos praticamente tocar nas nuvens. Acho que acordei no momento em que lhe perguntei se ainda se lembrava do boliviano e ela me respondeu que tinha esperança que ele, da janela de casa dele, visse aquela minha construção e se lembrasse dela.
Quando lhe contei o sonho, que ao fim e ao cabo não passava dum sonho estúpido, ela riu-se e deu-me um beijo furtivo nos lábios. Depois tirou duas maçãs dum saco de plástico, limpou-as à própria camisola e deu-me uma enquanto trincou a outra de forma a prendê-la na boca.
Esse foi o único beijo que demos, mas a verdade é que sinto que gostei realmente dela, sem nunca me ter apaixonado. É uma sensação difícil de explicar porque nunca foi clara para mim próprio. Para ela, aliás, também não. De tal forma que quando acabámos por ter uma conversa séria sobre o assunto, sobre a nossa proximidade tão pouco consumada fisicamente, ela respondeu-me que o melhor, quando estivéssemos a sentir que íamos passar uma certa barreira, era começarmos a caminhar para lugar nenhum.
Percebi-a imediatamente e, apesar da minha ideia ter vindo do nada, acabou por encontrar o seu próprio contexto.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»