05 maio 2013

Decalcomania



Ele não apareceu e eu sabia que o funeral estava feito. Para grandes males, grandes remédios, não é Senhor Doutor?... Saquei do número de um amigo especial, daqueles muitos coloridos mesmo e aferi se estava disponível.

Em minutos estava na porta da saída e entrei no primeiro táxi que passava. Um rapazito de t-shirt e jeans acolheu-me com um largo sorriso e mais olhadelas ao espelho retrovisor do que à condução. Começou a desfiar o seu rosário de que a vida dele não era aquilo, que até cantava em casas de fado do Bairro Alto e era convidado para muitos lados e até tinha um rapaz que lhe escrevia letras e estendeu-me uma folha pautada cheia de erros ortográficos que foi logo o que me saltou aos olhinhos, com uma história de amor trágico que só me lembrava aquela de que andava a desgraçadinha no gamanço para sustentar os seus três filhinhos. Mas acenei que aquilo era mesmo fado e sorri. E ele aprumou o pescoço e começou a cantá-lo. E depois mais outro e outro até num sinal vermelho, ao sol abrasador, puxar de duas cervejas, estrategicamente guardadas numa geladeirazinha entre o assento e a sua porta. Abriu-as com um abre-cápsulas que também era porta-chaves e estendeu-me uma avisando que estava incluindo na bandeirada. Não sei se era notório que eu estava à beira de um ataque de nervos ou se era apenas o reflexo das minhas pernas sob a pequenita saia preta esvoaçante no espelho mas para mim aquele táxi era Almodovariano.

Quando finalmente cheguei ao pé do meu amigo alagou-nos a urgência dos beijos e a azáfama de despir as roupas na premência de tocar pele conhecida como o baú do sótão da avó. Línguas e mãos em desvario, dos rostos até meio do corpo, na pressa de nos absorvermos. E quando as suas coxas roçavam as minhas nádegas e os meus mamilos subiam e desciam sobre o seus, abri então os olhos e vi o seu rosto transfigurar-se no do outro, o ausente, que ali ganhava contornos de nitidez indescritível. E naquele aperto continuei a ondular aquilo que o cérebro tornava virtualmente real.