Numa vila cada vez mais despovoada e monótona da província, no topo do monte que abarca a quase totalidade do casario, descobre-se a igreja, rodeada por um adro que já foi palco de corridas de bicicletas e de berlindes, mas que voltou agora à sua função primitiva de prelúdio a meia hora por semana de refúgio no recolhimento da fé.
Num destes domingos – um ao acaso, pois são todos iguais – depois da missa, estava o padre Barroso a acabar as sobras de vinho e hóstias quando a D. Martinha, correspondente da localidade na "Times" e no "Jornal do Incrível", entrou pela sacristia dentro, corada até às orelhas, fazendo repetidos sinais da cruz atabalhoados, totalmente transtornada:
- Ai, sô padre, o que ali está!... Sô padre, ali, mesmo em frente à igreja, uma coisa à mostra de toda a gente, grande!... Deus me perdoe, mas... até tem asas!...
- D. Martinha... não me diga... um homem nu, D. Martinha? – admirou-se o padre.
- Não, um homem não... só o instrumento... enorme... um instrumento do Diabo! Pintado na porta de madeira daquela janela em frente à igreja!...
- Pintado?! Ali?! Não, não pode ser, temos que afastar o demónio! – e pegando na serra com que o Ti'Baetas estava a podar as árvores do adro, dirigiu-se para a assinalada janela, com a D. Martinha atrás. "Ab omni pecato", apregoava o padre. "Libera nos, domine", respondia a D. Martinha. E caminhavam em passos largos. "Ab insidis diaboli"... "libera nos, domine"... "ab spiritu fornicationis"... "libera nos, domine". A ladaínha terminou mesmo em frente da tromba da impureza:
- Porra, que é mesmo grande! – deixou escapar o padre Barroso, à guisa de "ora pro nobis", ao olhar incrédulo para a figura que sobressaía em branco do fundo verde da madeira pintada.
- Mater puríssima, mater castíssima, mater inviolata! – berrou D. Martinha.
O padre Barroso brandiu a serra no ar, apontou-a para o céu e depois de um suspiro de mártir começou por uma das frinchas das tábuas da janela a serrar a toda a volta da figura demoníaca. Por fim, nem as asas daquele monstro trombudo o impediram de cair no chão com fragor. Cumprida a sua missão de fé, nem passou pelas cabeças do padre Barroso e da D. Martinha retirarem dali a tábua, ávidos que estavam de alívio... e foram para a sacristia comemorar a vitória sobre Satã, com o vinho e as aparas das hóstias que sobravam. Mas, nesse momento, ia para a igreja a menina Balbina, solteirona de setenta anos, fraca de vista e de memória, para rezar o meio (o terço não chegava para a sua cristandade). Estranhando a tábua ali caída, em frente às escadas do adro, aproximou-se:
- Os céus sejam louvados! – esbugalhou os olhos – que imagem tão linda do arcanjo Gabriel. Vai ficar tão bem em minha casa! – e lá arrastou o ícone com veneração até sua casa, onde vivia sozinha. E no seu quarto, numa mesinha de que retirou outros santos, colocou aquela imagem., ladeada por duas velas e a ela entregou toda a sua devoção.
Mas não tardou a sentir uma certa perturbação... terríveis dúvidas invadiram-lhe o fervor das suas orações e a pura alegria dos seus êxtases: "será de facto o arcanjo Gabriel?!... as pernas são tão feias, gordas e cheias de pelos! Mas de resto é uma bonita figura, entra pela alma dentro!" e para aliviar a consciência levou as suas vizinhas ao quarto e mostrou-lhes o pequeno altar improvisado. Quando lhe disseram o que aquilo era, caiu redonda no chão e morreu, mas não sem dizer as suas últimas palavras:
- E eu que tantos beijos lhe dei!
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