25 março 2005

Carta do Jorge Costa à Matilde Doroteia

"Há muito que não te ponho o olho em cima. Nem o olho... nem mais nada.
Lembras-te daquelas reuniões que tínhamos no gabinete do chefe, em que trocávamos memorandos, deitados no sofá do canto?
Não sei que raio de jeito demos... que o raio do sofá partiu. É uma verdade que naquela época... escrevíamos muito. Ó, se escrevíamos!
Ainda te lembras como eu fiquei enrascado, sem saber o que posteriormente dizer ao director,
quando ele chegasse e visse o sofá no chão? O que valeu foi o meu jeito p'rá bricolage.
Estava agora p'raqui a tecer estas linhas e uma coisa puxa a outra e lá lembrei (como também te lembrarás) daquela vez que fomos para casa de campo do J. e naquela noite de calor, após meia dúzia de saltos na cama, a porra da travessa lascou! Foi outra enrascadela. Lembras-te? Tive de lá voltar de martelo e parafusos para arranjar o catano da cama.
Isto para não falar daquela vez que quiseste à viva força - sim, que tu, Matilde Doroteia, és mulher de força - escrever uma carta no armazém das máquinas. Mas que raio! Logo havias de querer escrever deitada! E, não contente com isso, logo havias de, no fim da escrita, dar um pontapé na máquina da frente e fazer desmoronar tudo. Aquilo nao foi um pontapé... foi mais um esticão que te deu pela espinha e te provocou aquele espasmo! Mas que raio de espasmos que te davam!...

Aqui bem se lixaram. Eu arranjo muita coisa, mas amolgadelas... não. Olha, ainda me lembro de se ter reclamado p'rá fábrica que tinha vindo uma máquina amolgada.
Eras do piorio. Sim, que eu era até muito sossegado.
Só de lembrar que na mesa do refeitório, onde o maralhal comia a sopa e as migas que trazia de casa, tu mandaste tudo p'ra canto, só p'rá gente ter espaço para escrever dois memorandos seguidos... E sempre deitada. Muito gostavas tu de escrever deitada! Muito gostavas tu dos meus ditados!
Eras de força, Matilde Doroteia! Naquela altura, lembro que a marmita do J.A. ficou com a sopa misturada com as batatitas que o desgraçado trazia p'ra morfar ao almoço. Olha que ainda lembro os berros:
- CARALHO... quem foi que me virou o caralho da marmita?!
Coitado. Eu é que, coitadito de mim, ficava ali p'ra um cantito, com olhinhos de carneiro mal morto, sem saber o que dizer. Eu sabia o que fazer, mas tinha «horinhas»... que não sabia mesmo o que dizer. Mas que raio! Passavas a vida a escrever. E eu sempre com o tinteiro atrás... Pois é, Matilde Doroteia, lembrei-me de te dedicar estas letras em virtude de ter uma nova secretária. Esta, parte menos a mobília. Sempre me dá menos trabalho no fim de cada carta.
Se bem que tem a mania de rasgar lençóis...
Olha... seja tudo por môr'da escrita!

Jorge Costa"

Original gamado aos Pés Quentinhos

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