Mal havia chegado ao átrio do tribunal quando ouviu o seu nome cantado em voz autoritária mas não desprovida de simpatia por uma funcionária judicial. Subiu as escadas em passo acelerado e respondeu prontamente ainda antes de as abandonar. Ouvindo-o, a funcionária interrompeu o nome seguinte, levantou os olhos, acenou ligeiramente com a cabeça na sua direcção e repetiu o seu nome, “Júlio F… A… F…”. Ele confirmou e, sem mais formalidades, ficou assente para todos os devidos e necessários efeitos que ele era ele e estava ali. Então, encostou-se à parede e ouviu a funcionária declamar, sem resultados, os nomes seguintes do rol de testemunhas do processo para o qual havia sido convocado e, contrariado por não estar incluído nas ausências, procurou as pessoas que o levaram a estar ali àquela hora da manhã. Ninguém. Nem testemunhas, nem arguidos, nem ofendidos. Nada. Nenhuma pessoa do “seu” processo; só um advogado.
– Vamos aguardar – declarou a funcionária, olhando para o relógio de pulso e depois para o advogado e para ele.
– Mas faz-se? – perguntou o advogado, aproximando-se da funcionária.
– Em principio não, mas para já não lhe posso garantir. Têm de aguardar – completou, incluindo-o.
O advogado, aproveitando a inclusão, cumprimentou-o, apresentando-se como mandatário do arguido, por quem Júlio ali estava, e seguiu esticando imediatamente a conversa condenando de forma veemente a falta de informação quanto às consequências da greve.
A funcionária ouviu o causídico com um longo encolher de ombros, enquanto Júlio escutava sem opinar, sentindo-se cada vez mais contrariado por estar ali.
– Vamos aguardar – rematou a funcionária no fim do arrazoado do causídico, afastando-se.
Assustado com a perspectiva de ficar sozinho com o advogado, Júlio chamou a funcionária, perguntou-lhe se tinha tempo de ir beber um café e sorriu-lhe agradecido com a resposta positiva. Estava livre, pensou, cruzando acidentalmente o olhar com o do advogado.
– Quer ir tomar um café, doutor? – convidou, sem querer, por mera educação, dirigindo-se ao advogado.
– Pode ser – respondeu o causídico com inesperada convicção e prontidão, que a frase que transcrevo não revela, nem na forma nem no tom, mas que, a bem da verdade, mantenho nos seus precisos termos.
No caminho, curto, entre o tribunal e a pastelaria mais próxima, falaram do tempo e da justiça e de como ambos se encontram cinzentos e pouco recomendáveis. O advogado falava de dias de sol e de tempos mais prazenteiros. “Com outras formas de se fazerem as coisas e em que nos sentíamos melhor. Muito melhor”, sublinhava em tom grave e sério. Desconsolado, Júlio ouvia-o sem balir, balançando a cabeça a compasso.
Já junto à porta da pastelaria, o advogado travou-lhe o passo, tocando-lhe com a mão no braço:
– Vamos antes ali – disse, apontando para um café mais adiante, sem disfarçar a observação atenta e interessada que fazia do interior do estabelecimento que acabava de rejeitar.
– Por mim… – respondeu Júlio, apanhado de surpresa e tentando, debalde, perceber onde o homem fixava o olhar.
O advogado, mantendo um estado de enlevada contemplação do que se passava para lá da montra envidraçada da pastelaria, perguntou-lhe, sem se mover e como se o fizesse para adiar por uns instantes o despegar do nariz do vidro:
– A não ser que se importe. Importa-se?
– Não – assegurou Júlio, encolhendo os ombros. – Por mim é igual, doutor.
E seguiram, o homem conjecturando numa explicação para o sucedido e o advogado, com uma súbita expressão de profundo desalento, recolhendo-se na análise visual das pedras da calçada que a seguir pisava.
Beberam o café e voltaram para a Casa da Justiça, sem trocarem mais do que meia dúzia de palavras de circunstância.
Subiram, souberam que o impasse se mantinha e desceram para fumar um cigarro.
– Se calhar, há bocado ficou a pensar que eu era maluco – disse o advogado, entre duas passas no cigarro.
– Quando? – perguntou Júlio, surpreendido, percebendo, quando se ouviu, que não o havia negado como queria.
– Quando fomos tomar café – esclareceu o advogado. Júlio fez uma careta como se não percebesse. Ele continuou: – Quando lhe disse para irmos mais à frente e fiquei a olhar para a pastelaria como um miúdo para uma loja de doces.
– Ah… – Fingiu Júlio sem muita convicção e, convicto, mentiu: – Não.
O advogado riu-se.
– Não viu, pois não? – perguntou, abrindo um sorriso de quem sabe um segredo.
– Não vi o quê, doutor?
– Não viu – troçou, definitivo. – Se visse, sabia.
– Mas dentro da pastelaria?
O advogado chegou-se a ele e segredou:
– Atrás do balcão está a coisa mais apetitosa que consegue imaginar. – Levou as pontas dos dedos aos lábios e beijou-as ruidosamente. – Um docinho! Uma coisa fantástica!
Júlio hesitou na resposta mas, apreciando os trejeitos e expressões de lúbrica admiração e voraz cobiça que o advogado teatralmente fazia com cómico empenho, decidiu segui-lo:
– Então… – olhou-o com ar sentido. – Então e levou-me para o outro café?
– Aquilo faz-me mal em jejum – justificou o causídico. – É que você não está a ver, nem sequer a imaginar.
– O doutor não me deixou – queixou-se Júlio, forçando-se a dar um tom lamurioso de irreparável decepção que o causídico sentiu e aceitou sem duvidar.
Penalizado e arrependido, o advogado olhou-o sério e declarou solene:
– O problema são as calças.
Júlio, espantado, balbuciou:
– As calças, doutor?
– Sim, senhor, as calças – confirmou o causídico, movendo lentamente a cabeça na vertical, com o ar entendido de quem perdeu tempo a pensar no assunto. – As calças de ganga que a empregada da pastelaria usa, invariavelmente do mesmo modelo e que é, certamente, o que mais a favorece… E favorece muito! – Exclamou com um sorriso matreiro e um piscar de olho a pedir cumplicidade masculina. Aguentou a pausa até o interlocutor sorrir e recomeçou: – As calças que ela usa ajustam e modelam-lhe as nádegas de tal forma… – mordeu o lábio inferior. – Faz-nos acreditar que Deus existe, é verdade, mas é-me tão penoso beber café ao balcão… – arrastou a frase e terminou-a num suspiro teatral. Fez uma careta, abanou a cabeça e concluiu: – Faz-me mal… Muito mal. Tão mal que, às vezes, prefiro nem ver… Fico extasiado… É mesmo, fico extasiado como um parvinho.
– Estava enganado o Camilo – comentou Júlio, sorrindo.
O advogado olhou-o por um momento, apanhado de surpresa mas a processar a informação com crescente alegria, e respondeu, rindo:
– Estava, de facto, estava. É verdade, por vezes, a gente extasia-se! Extasia-se mesmo!
“– A gente não se extasia, minha senhora. Olha.”, de A Mulher Fatal, de Camilo Castelo Branco.