Uma vez disseste-me que escrevesse das coisas que vejo na rua, pequenos movimentos de pernas, redondos passos de mãos, as pessoas que passam mais ou menos do que são nas ruas àquela hora, a pedra que dorme no chão e as esquinas que segredam atrás da mãe que leva os filhos de volta a casa enquanto sonha com a juventude e o amante imaginário espreita à espera da loucura que não chega porque o tédio mata mas nunca se divorcia da lucidez, o homem que atravessa a estrada a correr em fuga da coragem porque nunca mais quer enfrentar as somas dos talões do supermercado e o dia e noite só de horas a fio, as chaminés que cantam as fomes emocionadas para cada estômago quente e triste, comer para amanhã acordar noutro dia de igual manhã e talvez sejam felizes nos intervalos das coisas ou nas recordações de coisas que só agora percebem felizes, um menino de joelhos negros joga um jogo que tem gatos amarelos a miar aflitos, são tantas coisas nas mãos pequeninas de cada garoto, um mundo inteiro entre dedos de sorrir, eu ainda quero um pijama macio e um beijo. Não percebi porque me disseste; alguma vez eu escrevi outra coisa que não das pedras e almas que me atravessam a estrada das palmas, pernas feitas de pontas de dedos?
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Uma por dia tira a azia