27 fevereiro 2013

«respostas a perguntas inexistentes (224)» - bagaço amarelo

do que falamos quando falamos de Amor, de amizade e mais do que vocês quiserem...

O que eu vos vou contar a seguir terá, a meu ver, um grande interesse para alguns de vocês e nenhuma importância para outros. Na verdade, é normal que seja assim. Uma das poucas coisas que aprendi na minha vida é que é assim que podemos encontrar os nossos melhores amigos. Dizendo o que realmente nos vai na alma e perceber quanto é que isso pode interessar aos outros.
Eu estou convencido que há um processo filosófico em tudo aquilo que fazemos, desde as acções mais corriqueiras e quotidianas até às opções que se fazem para uma vida inteira. Por exemplo, acho que há filosofia na forma como um homem apanha o autocarro todos os dias para ir para o emprego, da mesma forma que há no acto de decidir casar com alguém.
Posso estar errado, mas tenho reparado com admiração na forma como a minha companheira alterou a sua vida em função da cadela que adoptámos recentemente. Levanta-se todos os dias mais cedo para a levar a passear, enquanto eu fico a roncar mais uns minutos. Não imaginam a admiração que eu tenho pelo que ela faz, mesmo que resmungue por dentro quando acordo por momentos com a confusão de a sentir a vestir-se e ter um cão aos pulos e a arfar dentro do quarto.
Aquilo que a Raquel fez é, de facto, uma opção filosófica É verdade que também tem uma carga emocional muito grande, mas acredito que esse seja o denominador comum em tudo aquilo que fazemos. Ela considera, mesmo que não o diga, que está a contribuir para um mundo melhor dando a oportunidade a um cão de ter uma vida também melhor, e faz realmente por isso.
Mas o que eu vos queria mesmo contar tem a ver, precisamente, com a razão pela qual me tornei bastante próximo duma mulher, já há uns anos atrás, e de quem cheguei a ser íntimo por algum tempo. Mulher essa, aliás, com quem ainda hoje mantenho um contacto mais ou menos regular para, como se diz na gíria, pôr a conversa em dia.
Houve uma fase na minha vida em que, apesar de me sentir bastante só, tinha uma vontade enorme de estar sozinho. Estar sozinho e sentir solidão são coisas completamente diferentes, como devem saber. Por isso mesmo o que eu queria, ou pensava que queria, era apaixonar-me seriamente por uma mulher para, de vez em quando, afastar-me dela e poder gozar esse momento na sua total plenitude.
Nos comboios, por exemplo, preferia viajar sozinho do que com alguém ao meu lado. Arranjei então um método para que isso pudesse acontecer o maior número possível de vezes. Quando eu entrava no comboio e já não havia grupos vazios de cadeiras, procurava sentar-me ao lado de alguém que não tivesse tirado o casaco. A razão era muito simples. Quem não tira o casaco é porque vai fazer uma viagem curta e, assim, sairia antes de mim, havendo consecutivamente uma maior probabilidade de eu fazer parte da viagem sozinho.
Lembro-me que uma vez entrei na estação de Aveiro e, tendo em conta o meu método, sentei-me ao lado de um homem que levava uma gabardina apertada e um guarda-chuva na mão. Pensei que ele fosse sair numa das estações seguintes, mas a verdade é que foi assim até à última estação de todas, no Porto, a mesma em que eu saí. A partir daí tornei a cruzar-me com o homem, sempre totalmente vestido e em viagens de comboio, mas nunca mais me sentei ao pé dele.
Uma noite contei esta história no café, entre um grupo de amigos, e ninguém me deu importância nenhuma. Um deles, já com três ou quatro cervejas bebidas, perguntou-me mesmo porque é que raio eu estava a contar esta história que não tinha interesse nenhum.
No entanto, uma mulher de quem eu nem sequer era grande amigo quis continuar a conversa, e explicou-me que também tinha um método para se sentar nas viagens de comboio. Disse-me ela que gostava de escolher cadeiras que estavam ocupadas por coisas. Há passageiros (já reparei nisso com alguma irritação) que, provavelmente também para irem sozinhos, sentam-se num sítio qualquer e depois ocupam as cadeiras ao lado com malas ou casacos. A Guida, assim se chama ela, disse-me que sempre que reparava numa coisa dessas, aproximava-se e pedia muito delicadamente para desocuparem a cadeira, para ela se sentar.
Nessa noite ficámos grandes amigos, penso eu que pelo simples facto de sermos capazes de ter uma conversa sobre o método que usávamos para nos sentarmos num comboio. Pode parecer-vos estranho, mas para mim isto faz todo o sentido. Foi sempre assim que acabei por fazer amigos ou até encontrar namoradas, através do que considero ser uma compatibilidade semântica entre pessoas.
Este blogue acaba por ser um bocado isso. Não tem um fio condutor. Às vezes invento aquilo que escrevo, outra vezes não. Às vezes sinto-me feliz, outras vezes triste. Muitas vezes, quase sempre, o que eu queria era poder contar-vos cara a cara aquilo que escrevo, embora às vezes também prefira estar sozinho e simplesmente escrever. De qualquer maneira, é disto que eu acho que falamos quando falamos de Amor, de amizade e mais do que vocês quiserem...


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»