Eram de camurça e de um salto que, a mim, me parecia bastante alto. O cano ficava-te um pouco acima do meio da perna, não eram botas muito altas. As paredes eram de um cinzento bastante escuro, mas não chegavam a ser antracite, e o tecto, provavelmente falso em pladur, pintado de preto. Não era um preto amedrontado, muito menos um cinzento demasiado escuro, era um preto abissal, do mais preto que um preto pode ser. Com a iluminação imbutida junto aos rebordos, numa luz ténue, regulável, que jorrava pelas ondulações das cortinas brancas. Como brancos eram os lençois da cama e do edredon que a tapava.
Se o meu olhar fosse perfeitamente calibrado, poderia dizer que as tuas pernas se abriam de tal modo que os teus pés, fincados no chão com esse salto bicudo, distavam entre si uns bons cinquenta centímetros. Estavas sentada na beira da cama, do lado direito da cama para ser mais preciso, com os teus braços apoiados nas coxas e as mãos juntas. Pendendo a cabeça, os teus cabelos cediam à gravidade e tapavam-te o rosto. Longos, entre as tuas pernas, passavam o plano imaginário das coxas roliças e ondulavam ligeiramente. Porque o teu corpo, vivo, pulsava e respirava, e porque também as cortinas à tua frente ondulavam ligeiramente pela brisa que entrava, numa noite muito tranquila, quente, em que a porta do quarto para a varanda, deslizante e em vidro, de alto a baixo, estava totalmente corrida para o lado. A barreira entre o nosso universo e o mundo dos estranhos, se lhes desse para olhar e alguém lá fora estivesse, seria apenas um tecido ondulante com sombras mal definidas mas, porventura, sugestivas.
Observava-te enquanto, com o telefone encostado ao ouvido, ignorava as palavras que me dirigiam. Sei que respondi qualquer coisa como «Pode ser, obrigado» e desliguei. Nas tuas costas, e no lado oposto da cama, permaneci em pé, a ver o teu cabelo ondular. Deixei-me encostar à parede, flectindo uma perna e apoiando a maior parte do peso na outra. Cruzei os braços. O clique do telefone que pousei fez-te virar a cabeça um pouco para a esquerda. Com o olhar acompanhei o contorno das tuas pernas, passando por aquela curva que tanto aprecio, quando as coxas se transformam em anca e depois em cintura. Continuavas imóvel. E eu também. Qualquer palavra minha, ou gesto, podiam interromper os teus processos neuronais, as ponderações, as avaliações que estavas a fazer. Como balança, pesando isto e aquilo. O conhecido e o desconhecido.
Mas então, finalmente, cruzas as pernas. Primeiro uma, para abrir o fecho, no lado interior das botas. Depois a outra. Com a prática de muitos anos demoras o que a mim me pareceram pouco mais de dois ou três segundos para desapertar e arremessar o soutien para o chão. E com um movimento muito fluído, ao mesmo tempo que o teu corpo se levanta e começa a descolar do colchão, as tuas mãos agarram a reduzida tanga e obrigam-na a contornar primeiro os glúteos, depois a descer pelas coxas e seguidamente a cair abaixo dos joelhos. Quando te viras para mim ostentas já a tua nudez. Talvez, ainda, ligeiramente desconfortável. Porque com o teu braço esquerdo, flectido, seguras os seios. Lembro-me de estranhar, na altura, como protegias os seios e, no entanto, nada fazias para tapar a púbis. Geométrica no corte, perfeitamente tratada. Feminina, presente, vísivel. Os teus lábios, grossos e com gloss, brilhavam naquela luz tépida e chamavam ao beijo. Não me engano. Era tépida sim, aos meus sentidos. Pela côr, por alguns contrastes e pela temperatura do ar, que nos permitia uma nudez sem arrepio.
Estavas, então, virada para mim, nós os dois em lados opostos, tu praticamente encostada à cama, e eu do outro lado, ainda apoiado na parede cinzenta. Deixaste então cair os braços porque gatinhaste sobre a cama até a navegar à outra margem. Olhavas-me fixamente, e então sentaste-te mesmo à minha frente. Disseste das primeiras palavras desde que tinhamos ali entrado, passavam então mais de três quartos de hora. «É só isto?», sim, que era só mesmo aquilo. Era esse o plano, como que num momento de ilusionismo, sem antes nem depois, mas com um durante elástico que se estende na memória mas não rompe, nem faz tropeçar. «E se quiser mais? Ou tu, e se tu quiseres mais?», como saber, que dizer? Se se quiser mais, se houver mais, vai ser preciso encontrar outras paredes cinzentas e tectos pretos, vais ter de gatinhar novamente até mim, ou eu, até ti. Vais ter de vir ao meu encontro sem roupa para vestir, porque é assim que te quero. Vais ter de vir ao meu encontro nestas noites de calor, quando te posso olhar sem tremer. Mas é muito improvável que isso aconteça. «Porquê?», porque, tu sabes, isto só acontece uma vez. A seguinte seria sempre diferente, e a outra depois disso ainda mais diferente, e à vigésima já isto seria nada. Já não virarias a cabeça quando ouvisses o clique do telefone, nem a ondulação das cortinas conferiria qualquer magia a este cenário. Isto era coisa para acontecer uma vez na vida. Com muita sorte e inteligência, duas. Talvez até três, se a vida fosse suficientemente longa e os corpos ainda firmes na determinação da alma.
Recuaste na cama até ocupar uma posição central. Depois deixaste que te colocasse uma venda sobre os olhos, e embora tivesses as pernas e os braços soltos, quem mandava neles era eu. Segurando-te pelos pulsos, acima da cabeça, debrucei-me sobre ti e disse-te que na minha cabeça existia muito sexo, demasiado sexo, todos os dias, a todas as horas, e que já te tinha fodido vezes sem conta, mesmo quando não sabias, e até mesmo quando sabias. Soltaste uma gargalhada, num momento de descontracção, algo que ainda não tinha acontecido até ali, e perguntaste-me «E então? Sabes o que fazer comigo?». Pausei um pouco. Apenas um pouco. E depois respondi-te, “vamos vendo, pelo caminho”. Depois de respirares fundo disseste-me «Está bem. Estou pronta», e com isso deixaste os teus lábios brilhantes descolar, a boca entreaberta e um ligeiro movimento no pescoço, de quem espera algo.
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